sexta-feira, 22 de maio de 2009

Na Esquina de Uma Vida

Chamem-me o nome que acharem que encaixa melhor na imagem que têm de mim, seja ela qual for, é tudo, menos quem eu sou.

O giz tocava o quadro deixando o típico rastro de linhas brancas que, há distância, formavam alguma equação, alguma frase, no fundo, meros elementos de um todo, reconhecível apenas por aqueles capazes de decifrar o código criado pela personagem que tomava o posto de liderança na frente da sala.

Quarta carteira a contar da direita, do lado da janela. Sim, sou eu o tipo a olhar para lá da janela, só, numa sala com vinte pessoas, a pensar num lugar distante, num mundo diferente. Sinto um ligeiro toque no braço, é o Tiago a avisar-me que a professora me está a chamar.

“Está bom tempo lá fora, não está?” O sarcasmo natural de uma das raras pessoas pelas quais nutro um certo respeito mútuo, e com a qual sinto-me à vontade para responder de igual modo.

“Não sei, acho que tenho de ir averiguar se está tão bom como parece”, mal as palavras saíram da minha boca, questionei-me sobre a extraordinária naturalidade com que elas surgiram. Como consigo ser tão eloquente em momentos como este, e um completo pateta em situações importantes? Ainda hoje não encontrei resposta para essa pergunta.

“Concentra-te no que se está a passar deste lado, já falta pouco para o descobrires”, disse, entre o seu já habitual sorriso e olhar sério de alguém que encara o seu emprego não como um ofício, mas como uma vocação.
 
Voltei a minha atenção para o centro da sala, mas os meus pensamentos não tardaram a desviar-se da matéria, fosse ela qual fosse, que estava em foco naquele momento. Não, bastou por os olhos nela, sentada na primeira fila, mesmo no centro, do lado esquerdo da sua carteira. Na verdade, o meu olhar já tinha caído sobre ela mal me dirigi para a professora e a vi a olhar na minha direcção. Libertei um triste, inaudível suspiro e concentrei-me em escrever algo no meu caderno, enquanto resistia à estranha tentação de empilhar caixas de minas uma em cima das outras.

Olhei para o meu pulso, maldito hábito que ao fim de tanto tempo ainda não consegui perder. Há já uns tempos tinha deixado o meu velho Casio amarelo guardado nalguma gaveta de minha casa. Ainda experimentei trocá-lo por um Swatch branco, mas logo no primeiro dia que o usei, a corrente arrebentou-se e com ela a minha vontade de controlar o tempo, ou de ser controlado por ele. Mas talvez algum sentido de identificação temporal ainda permanecesse vivo dentro de mim, um resquício primitivo de tempos há muito perdidos, pois mal repus a manga na sua devida posição, o toque surgiu. O seu eco ao atravessar pelas paredes do velho liceu, despertava uma autêntica romaria de cadeiras a arrastarem-se, portas a abrirem-se, e pessoas a falar.

“Finalmente fim-de-semana”, disse para o Tiago.

“Já não era sem tempo! Vou ver o Sporting a Aveiro, queres vir?”

“Era uma boa ideia, logo combinamos melhor”, toquei-lhe ligeiramente no ombro e dirigi-me na direcção dela.

“Vamos?” Por um momento perdi-me no seu olhar e esqueci tudo o que me rodeava.

“Sim.” O momento foi curto.

Pelos estreitos corredores, agora cheios de alunos apressados e desejosos de ir para casa saborear a doce liberdade do fim-de-semana, outras pessoas se juntaram a nós. Outro Tiago, o Acosta, o Policarpo, a Verónica e a Inês. Concentrámo-nos em frente ao portão da saída à espera daqueles que se atrasaram na conversa com outras pessoas. Uma vez juntos, e feitas as despedidas àqueles que daquele ponto para a frente não mais nos acompanhavam, seguimos caminho pela velha estrada de empedrado que nos levava até ao nosso destino, por entre ruas quase desertas.

O caminho era relativamente curto, num dia normal demorava 10 minutos a percorrê-lo, mas eu sabia que nunca chegaria a casa em menos de uma hora. A Inês era a primeira a deixar-nos, depois o Tiago, o Acosta, e finalmente o Policarpo e a Verónica acompanhavam-nos até à eterna intercepção, que, como uma verdadeira literalidade metafórica, separava o meu caminho do dela.

Geralmente ambos acompanhavam-nos em longas conversas triviais que chegavam a durar até à hora de jantar, mas que ali nos mantinham presos às palavras e experiências de cada um. Mas hoje seria diferente, por um motivo ou outro, tanto o Policarpo como a Verónica nos deixaram a sós, e seguiram os seus caminhos de regresso a casa. Ele pegou na sua bicicleta e rapidamente desapareceu no horizonte em direcção aos prédios para lá da linha de comboio. Ela apanhou a velhinha Feirense em direcção a São Vicente. Só restámos nós os dois.

Muitas eram as palavras que pairavam sobre o ar, muitas eram as conversas que ambos desejávamos e que ao mesmo tempo esperávamos nunca vir a ter.

Segurava o velho sinal de Stop que marcava o lugar do nosso encontro. Aqui éramos apenas nós, e nada mais. Eu sabia que podíamos perder horas ali a falar sobre qualquer assunto, era esse o poder da nossa amizade. Pois, infelizmente, era esse o único sentimento que ela via em mim.

Enquanto ela falava, apesar de a ouvir com a máxima atenção possível de se exigir a qualquer ser humano, absorvendo cada uma das suas palavras, perdia-me na observação dos seus gestos, dos seus profundos olhos castanhos, das leves ondas do seu cabelo, do seu querido nariz, e dos sentidos movimentos dos seus lábios.

O meu único desejo era pegar-lhe pela mão e dizer-lhe, ali, tudo aquilo que eu sentia, tudo aquilo que eu queria para nós. Dizer-lhe que a amava, que ela era o único motivo que me fazia levantar todas as manhãs, que ao vê-la sentia o meu coração a bater como se despertasse de um longo sono dormente, que ela era tudo, que só por ela valia a pena entregar todo o meu ser.

“Bom, tenho de ir ajudar a minha mãe a fazer o jantar.” Com esta frase a realidade fez regressar os meus pensamentos ao aqui e agora que não estava a prestar atenção.

“Já?” Nada mais me ocorreu.

“Tem que ser…”

“Oh. Até segunda, então?”

“Sim, até segunda”, respondeu com o seu típico sorriso que me deixava incapaz de reagir de qualquer maneira para além de simplesmente o retribuir, deixando-me perder nos seus olhos.

Ela preparava-se para atravessar quando as palavras saíram sem qualquer aviso.

“Espera”, disse.

“Sim?”

Contive-me, incapaz de forçar a honestidade de sentimentos que há muito guardo só para mim, embora no fundo sempre soubesse que ela já se tinha apercebido deles.

“Tem um bom fim-de-semana”, respondi.

“Tu também.” E com um último sorriso atravessou para o outro lado.

Fiquei a vê-la ir-se embora até a sua sombra se perder por entre as casas da velha rua de S. Miguel. “Um dia…”, disse a mim próprio, como sempre o fazia.

Continuei pelo rio da minha vida, cujo destino daquele dia desaguava às portas de minha casa. Hoje, continuamos a seguir caminhos distintos, próximos um do outro, mas mais distantes do que alguma vez conseguiria imaginar.

Publicado online em 22 de Maio de 2009
Publicado na Revista 9paginas em Outubro de 2009
Reeditado em 18 de Agosto de 2013