domingo, 27 de dezembro de 2009

Momentos

“Não me lembro de uma manhã de Novembro tão fria como esta”. Passavam alguns minutos das dez da manhã. Estava sol, mas a temperatura não ia além dos sete graus. Miguel estava na plataforma a olhar para o horizonte, expectante pelo comboio que deve chegar em breve. Ele aguardava por este dia há apenas algumas semanas, mas o tempo não era relevante. Na verdade, Miguel ansiara toda a sua vida pela chegada deste dia.

O relógio já se aproximava das onze quando o som familiar de toneladas de metal a ranger nos carris começou a fazer-se ouvir. Embora ele já tivesse presenciado esta agonia sonora inúmeras vezes, hoje soava de forma diferente, como uma suave melodia tocada por um mestre do violino. O comboio rapidamente surgiu na linha do horizonte, e num mero instante já estava a parar à sua frente. Quando as portas se abriram e a multidão de passageiros começou a sair, Miguel sentiu o seu coração acelerar. Era difícil decifrar alguém no meio deste mar de faces desconhecidas. Mas, num breve relance ele vê-a. “Sara”, chama. Ela acena na sua direcção, e ele responde com o mesmo gesto. 

Várias pessoas os rodeavam, apressadas na azáfama típica de uma manhã de Novembro, mas naquele momento eram apenas eles os dois, tudo o resto desvanecia num fundo que ambos ignoravam. Naquele cruzar de olhares, Miguel sentiu o seu coração a parar, enquanto se deslocavam em direcção um ao outro, era como se o tempo tivesse abrandado. Quando finalmente se encontraram frente a frente, tudo regressou ao normal. 

“Olá”, diz ela com o seu belo sorriso. “Olá”, responde, esboçando um sorriso que revela mais do que ele pretendia. 

Apesar do frio que se fazia sentir, naquele instante Miguel viu-se envolvido por um calor primaveril, que não se lembra de alguma vez ter sentido. 

“Vamos?” Ela consente, e descem as escadas para saírem da estação. 

Enquanto se deslocam, conversam sobre temas banais que naquele instante parecem ser muito importantes. Ambos perdem-se nas palavras um do outro, e o tempo passa com uma naturalidade inesperada. 

Após o almoço, encontram uma modesta esplanada numa pequena rua coberta de calçada. 

“Pode ser aqui?”, ele pergunta. 

“Sim, vou lá dentro pedir, o que queres?” 

“Nada, eu tenho de ir ali, dás-me cinco minutos?” 

“Sim, claro.” Sara responde, estranhando este súbito pedido. 

Miguel atravessa a rua e desaparece da sua linha de visão. Sara decide aguardar que ele chegue e procura uma mesa com vista para a cidade. Escolhe uma com um pequeno vaso vazio, sem nenhuma justificação para este se encontrar ali. Uma voz interior dizia-lhe que esta era a mesa certa, embora ela não o soubesse porquê. 

Passados cinco minutos, tal como prometido, Miguel aparece. Sara não se apercebe da sua chegada, e apesar de a sua face mostrar surpresa, esta não é provocada pela chegada de Miguel, mas sim por aquilo que ele traz consigo. Um ramo de Amores Perfeitos. Não, Miguel não escolheu estas flores por estas revelarem algum sentido subtil, mas sim por serem as preferidas dela. 

“Não pude resistir, vi-os na montra no caminho para aqui”, diz. 

“Lembraste-te… Obrigado.” Sara levanta-se e beija-o levemente na face. 

Ela coloca-as no vaso, embora não possa ter a certeza, acredita que, de alguma forma, é ele o responsável pela presença do vaso. 

Ambos sorriem enquanto trocam olhares, num momento de silêncio em que não são precisas palavras. 

Não tardam a retomar o ritmo da conversa anterior, contudo há algo diferente, ambos o sentem, mas o momento ainda não é o certo. 

À medida que o dia se aproximava do fim, Sara e Miguel sentiam a noite a aproximar-se. Ambos sabiam o que isso significava. 

Miguel levou-a a um jardim, o sol já começara a pôr-se. Um corredor de velhas árvores reluzia em tons de dourado, enquanto os últimos raios do sol outonal brilhavam sob os castanhos, laranjas e amarelos das folhas que ocupavam as copas e preenchiam o céu. No chão, a relva verdejante cintilava de vida. Escolheram um pequeno banco mesmo no fim deste corredor onde se sentaram a contemplar o último hino à beleza natural, que o sol deste dia estava disposto a celebrar. 

“Lindo, não é?” Sara diz. 

Miguel, que estava a contemplar o horizonte, vira o olhar para ela e responde: “Sim.” 

Silêncio. Desta vez Sara não sorri, desvia o olhar para as suas mãos e o seu coração acelera, como que banhado por uma torrente de realização. 

“Miguel, eu…” Mas antes que ela possa dizer algo, ele toma a sua mão direita e acaricia-a levemente. Ela volta a cruzar os seus olhos com os dele. Algo impele-a a falar, mas ele abana ligeiramente a cabeça. Não. Não assim. 

A noite cai sobre o jardim outrora dourado. Está na hora de se despedirem. Ela agarra nas suas flores e aperta-as fortemente contra o seu peito. Ambos atravessam novamente o corredor, agora apenas iluminado pelas luzes dos candeeiros de rua. Lado a lado, apenas os dois. 

Chegaram à estação pouco antes da hora de partida. O comboio já aguardava na sua plataforma. Alguns passageiros começavam a embarcar. 

“Acho que tenho de ir…”, Sara diz, olhando para uma das portas da carruagem. 

Miguel aproxima-se dela e envolve-a num abraço profundo. Sara encosta a sua face ao seu peito. O tempo pára, desta vez, na sua totalidade. Naquele momento ambos conseguem sentir o coração um do outro, ambos batem em uníssono, gritando pelas palavras negadas durante todo o dia. 

Sara afasta-se ligeiramente do seu abraço e olha-o intensamente. 

“Miguel, eu…”

“Eu também”, interrompe. Estas duas palavras dispersam qualquer sombra de dúvida que pudesse ainda existir. Apenas uma palavra é capaz de descrever aquilo que sentem um pelo outro, e mesmo ela parece insignificante perante um sentimento tão intenso como aquele que ambos partilham. Amor. 

O comboio apita para a última chamada de embarque, e fá-los regressar friamente à realidade. Sara liberta-se do seu abraço. Enquanto se afastam um do outro, os braços de ambos atravessam-se suavemente, como que tentando impedir que o outro seguisse o seu caminho. Quando os seus dedos se cruzam, sentem pela última vez o calor do seu amor. Sara agarra fortemente o ramo de Amores Perfeitos junto ao seu peito e dirige-se para a porta. Miguel ouve através deste gesto aquilo que ambos quiseram dizer. 

Ao subir para a carruagem, ela detém-se por momentos nas escadas e olha-o por uma última vez antes de partir. Sara sorri, aquele sorriso que ela reserva apenas para ele, e Miguel contempla-o por uma última vez. 

Ela entra na carruagem. Como se tivesse que compensar pelos momentos em que esteve parado, o tempo acelera e tão depressa como chegou, o comboio desaparece de vista. Miguel permanece no mesmo lugar a fitar o horizonte, como tinha feito hoje de manhã. Foram apenas algumas horas, mas para ele foi como se uma vida inteira tivesse passado, nos breves momentos que Sara partilhou com ele. 

Publicado em 21 de Agosto de 2013