sábado, 8 de outubro de 2011

Os Cinco Estágios de Luto

Passava pouco das nove da manhã. Miguel olhava pela janela para a rua iluminada por um branco matinal, típico do sol de uma manhã de Outubro. A luz penetrava pela janela semi-aberta do escritório, realçando o sofá onde Miguel aguardava pela consulta. Um homem observava-o na penumbra oposta do outro lado da sala. Os dois trocaram um olhar enquanto Miguel saboreava os últimos momentos do cigarro que segurava entre os dedos.

“Aqui tem”, disse o homem oferecendo-lhe um cinzeiro.

Miguel expirou lentamente deixando o fumo desvanecer-se pelo ar com a leveza de uma clara neblina. Enquanto esmagava as cinzas na base do cinzeiro, o seu olhar voltou a desviar-se para o homem do outro lado da sala. Um silêncio de antecipação abateu-se pelo escritório.

Miguel foi o primeiro a falar.

“Por onde quer que comece?”, perguntou.

“Não existe qualquer regra estabelecida, mas como na maioria das histórias, pode sempre começar pelo início.”

“Permita-me então que contrarie a norma e que comece pelo fim.”

“Como desejar.”

“Há cinco estágios de luto…”

“De morte”, interrompeu o homem.

“Ambos dependem da perspectiva, do sujeito que a vive. Embora se tratem de dois estados diferentes, têm ambos o mesmo objectivo. Seguir em frente, e aceitar a necessidade de o fazer.”

“Podemos colocar as coisas dessa forma, mas não se esqueça que são dois tipos distintos de aceitação.”

“Talvez, mas não concorda que no fundo ambos os percursos procuram apenas ensinar-nos a conviver com a inevitabilidade do nosso destino?”

O homem ponderou por um momento e assentiu.

“Como estava a dizer, há cinco estágios de luto. O primeiro é a negação.”

“O estágio em que actualmente se encontra?”

Sem se aperceber, Miguel brincava com o seu isqueiro por entre os dedos. Observou este acto involuntário das suas mãos por alguns instantes, antes de se dirigir novamente ao homem.

“Acho que parte dos motivos que me trouxeram aqui hoje, foi o senhor ajudar-me a descobrir em que estágio me encontro.”

“De facto posso ajudá-lo, mas preciso de mais informação.”

Miguel retomou a sua história.

“Negação. Talvez seja esta a melhor fase. Mantemos a esperança de que as coisas possam ainda melhorar. Sair da cama faz-nos pensar que o novo dia pode trazer algo melhor. Que tudo não passou de um pesadelo. Mas como o próprio nome indica, tudo isso não passa de uma doce mentira que contamos a nós próprios para que a dor não seja tão forte.”

A sua expressão manteve-se séria, inalterável. O homem observava-o, incentivando-o a continuar.

“É só uma fase, vai passar. Os seus níveis hormonais estão desregulados. Afinal a página da Wikipédia dizia que paranóia era um dos sintomas mais comuns. O Verão nunca foi uma boa estação para mim, quando regressar o Outono voltaremos a ser felizes. A minha sensibilidade à luz faz com que me veja obrigado a semicerrar os olhos o que me torna menos atraente. Afinal o amor supera tudo, não é? Quando se ama alguém é para sempre e nada pode mudar isso. A mulher por quem me apaixonei continua lá, algures. Ela voltará a ser a mesma.”

Miguel falava para o vazio, ignorando a presença do homem.

“Pequenas mentiras racionais que contamos a nós próprios para fazer com que tudo fique melhor. Mas não fica. A dor continua lá e o passar do tempo apenas alimenta esse sofrimento.”

“Como está a lidar com esse sofrimento?”

Miguel respirou fundo, pensando em silêncio. O seu olhar desviado para a janela do escritório. Segurava o isqueiro na sua mão direita, acendendo-o durante curtos intervalos.

“Às vezes gosto de pensar que saltei a negação, fodi todos os outros estágios e mantive-me na raiva, deixando-a apoderar-se de mim até que cada centímetro do meu corpo se tornasse dormente”, responde, deixando sair um riso irónico.

“Descreva-me essa raiva.”

“Raiva. Segundo estágio. Ódio. Frustração. Sentimento de impotência para com tudo. Como se atreve a questionar os meus sentimentos por ela? Porque é que se limita a pegar em ridículos e insignificantes pormenores? Como pode alguém se esquecer de todos os momentos bons que passámos, de como éramos felizes e apenas insistir em dois ou três episódios maus que podiam ser tão facilmente apagados por uma fracção dos dias em que fomos felizes? Porque tenho que levar com esta barreira irracional que a impede de ver a simples verdade do nosso amor?”

Sem se ter apercebido, Miguel lançou o isqueiro para o outro lado da sala. As suas mãos, agora nuas, seguravam a sua face, impedindo em esforço, como uma frágil barragem, o fluxo de lágrimas que os seus olhos pareciam ameaçar.

O homem continuava a observá-lo serenamente.

“Quer contar-me o que se passou?”, perguntou.

“Não. Certas histórias precisam do momento certo para serem contadas.”

“Este não é o momento certo?”

Miguel compôs-se e voltou a fitar o vazio por alguns instantes. “Não”, respondeu, finalmente.

O homem assentiu, enquanto anotava algo no seu bloco de notas.

“Suponho que queira falar sobre a negociação.”

“Pensava que já tinha acordado o preço com a sua secretária.”

O homem sorriu, surpreso pela breve centelha de humor. “Continue.”

“Terceiro estágio. Negociação. Talvez o mais humilhante. Tão útil como lançar uma garrafa de oxigénio para uma casa em chamas na esperança de as apagar.”

Miguel pausou por alguns segundos antes de continuar. O homem ofereceu-lhe um copo de água que ele aceitou com gratidão.

“Pensei para mim próprio”, continuou. “Talvez se eu mudasse, talvez se ela me desse mais uma oportunidade de lhe provar como podemos voltar a ser felizes. Basta estarmos juntos, ela vai voltar a senti-lo. Se eu implorar, se eu bradar aos céus o que sinto por ela, talvez aí…”

Hesitou, inseguro sobre o que estava prestes a revelar.

“Uma noite cheguei mesmo a rezar, a pedir que ela desse ouvidos ao seu coração e que de alguma forma encontrasse a calma de espírito necessária para quebrar a sua lógica destrutiva e voltar a ser feliz comigo. Um último acto de desespero…”

O homem observou Miguel pensativamente antes de falar.

“Recorrer a uma entidade superior quando nos sentimos impotentes e nada mais temos onde nos apoiar, faz parte da condição humana. Não é algo do qual deva ter vergonha.”

Miguel anuiu.

“Foi nesse momento que percebi que nada mais havia a fazer. Por mais que me quisesse convencer do contrário, por mais que me quisesse agarrar a uma réstia de esperança, nada mais podia fazer.”

“Quarto estágio”, disse o homem.

“Depressão”, respondeu.

“Por mais romântico que fosse, por mais poemas que escrevesse, por mais canções que lhe cantasse, nada iria mudar. Embora não tivesse feito nada de mal…”, parou, hesitante.

“Aliás, embora tenha errado em certos aspectos, quando não se comete um ‘crime’ específico, algo objectivo que seja capaz de ser remediado, que seja capaz de ser perdoado, nada há a fazer. Nada há a fazer, quando o problema és tu, a forma como te vês, como és, como sentes, como vives. Quando o teu único erro é a tua maneira de estar, e de ver o mundo, nada podes fazer. Nada podes fazer a não ser…”

As primeiras lágrimas escorriam pelo seu rosto enquanto ele voltava a olhar através da janela semi-cerrada.

“A não ser?”, perguntou o homem.

Miguel limpou as lágrimas dos seus olhos, calmamente dirigindo o seu olhar para o homem.

“Aceitar.”

“Quinto e último estágio”, respondeu.

“Já estive em baixo, antes. Normalmente dormia durante horas a fundo sem qualquer vontade de me levantar da cama, mas não agora. Mal consigo dormir. Embora tenha alguma facilidade em adormecer, acordo muito antes da minha hora habitual e levanto-me quase de seguida. Apesar das poucas horas de sono, é raro sentir-me exausto ao fim do dia. Para ser sincero, é raro sentir seja o que for.”

“Acha que ainda se encontra no quarto estágio?”

“Sim. Não estou preparado para seguir em frente, não sou capaz de aceitar a ideia de que a perdi para sempre. De esquecer todos os planos que tínhamos, todas as coisas que não fizemos. De apagar toda a imagem de um futuro juntos. Tenho saudades dela, do seu olhar, do seu sorriso, do seu cheiro, do seu toque… Tenho saudades do seu amor. Tenho saudades da nossa felicidade.”

Miguel rompeu em lágrimas e deixou-se cair no chão do escritório. O homem aproximou-se para o consolar, oferecendo um lenço de papel. Durante alguns minutos, ficaram ambos ali. O silêncio da sala era apenas interrompido pela respiração ofegante de Miguel.

“Estes ataques de ansiedade são-lhe frequentes?”

“Uma vez por dia, pelo menos”.

O homem assentiu anotando no bloco de notas.

“Parece-me que compreende perfeitamente qual o próximo passo a tomar.”

“Seguir em frente.”

O homem esboçou um sorriso de concordância.

“É bem mais fácil dizer que fazer”, responde.

“Por mais que eu queira que a dor acabe. Sinto a necessidade de compreender o que se passou, de saber porque é que tudo isto aconteceu. Éramos tão felizes, tudo parecia tão certo.”

O homem ponderou por alguns segundos antes de responder.

“A palavra-chave nesse frase é ‘parecia’. Talvez tenha razão. Talvez apenas se tenha tratado de algo que aconteceu de um dia para o outro, talvez ela apenas não se tenha sentido à vontade para partilhar consigo o que se estava a passar. Independentemente disso, o que é importante para si neste momento não é procurar as razões que o trouxeram aqui, mas sim redescobrir a sua autoconfiança, aceitar que ela o magoou e sentir-se capaz de seguir em frente para encontrar alguém que seja capaz de o amar por quem é, sem que sinta a necessidade de mudar. O seu futuro passa por alguém que o aceite, e com quem se sinta à vontade para ser real a si próprio.”

Sentindo-se melhor, Miguel compôs-se e sorriu.

O homem olhou para o relógio, já passava da hora que tinham combinado.

“Muito obrigado”, disse Miguel enquanto se despedia do homem.

“Nunca subestime o poder do respeito por si próprio. Ser capaz de aceitar tudo aquilo que faz de si alguém único, é o primeiro passo para a aceitação do seu próprio destino.”

Miguel esboçou um último sorriso antes de sair.

“Quinto estágio”, disse, enquanto saía do escritório para regressar a casa. O sol outonal ainda brilhava com intensidade, iluminando um novo dia cheio de oportunidades escondidas ao virar de cada esquina.

Miguel respirou fundo e regressou a casa com um sentimento de paz lentamente a apoderar-se do seu corpo, consolando, a cada passo, a dor que pesava no seu coração.

Publicado em 8 de Setembro de 2013

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A Morte do Herói

Enquanto o Sol se escondia sob a penumbra de um céu enegrecido pelas chamas que queimavam os últimos centímetros de atmosfera, em fúteis tentativas de travar o eminente juízo final que se abatia sobre a Terra, apenas um homem inutilmente se impunha na zona de impacto. Miguel contava os segundos para o fim. Rodeado por uma imensidão de nada os seus últimos pensamentos iam para ela e para a simples claridade de uma única certeza: estava verdadeiramente só.

Os seus olhos disparavam em todas as direcções, em busca de um vulto, de qualquer sinal de movimento, agarrando-se à mais ínfima réstia de esperança, à fé nas palavras de uma velha promessa. Mas nada. As próprias árvores pareciam preparar-se para esta inevitável conclusão. Nada se movia naquela clareira além dos gestos de antecipação deste imprudente rapaz. A solidão deu lugar a breves lágrimas, supridas pela inquietação de uma calma aterradora, típica de alguém refém do seu próprio destino.

Miguel fechou os olhos saboreando o seu último fôlego. Virou a cabeça para cima e abriu-os. Nestes seus últimos segundos, não deixou de se admirar com a irónica beleza da visão que assolava este céu infernal. Ao preparar-se para o choque, viu, por uma última vez, a única memória que ainda lhe restava de um tempo em que era feliz. “Sara…”, com um suspiro largou a sua derradeira palavra, espelho das recordações de uma vida que agora termina. Cerrou novamente os olhos para não mais os abrir.

Ao acordar no chão daquele velho terraço, Miguel levantou-se em um sobressalto. Impulsionado pela chuva que ardia na sua face. Cada gota como uma gélida facada penetrante. Viu-se forçado a cambalear até ao parapeito mais próximo, ainda atordoado pelo choque da queda.

Ele ainda estava ali, o mesmo vulto negro que o tinha espancado até um ponto de quase inconsciência. Agarrava Sara nos seus braços com a arma apontada à sua cabeça. As forças escapavam a Miguel mas tinha que fazer alguma coisa. Não a podia deixar morrer, não ali, não agora, não pelas mãos daquele monstro.

O vulto parecia gabar-se pela vitória alcançada. A rebentação de um relâmpago no horizonte ilumina por breves momentos o breu da noite. Miguel consegue ver com clareza a cara do seu rival. Um sorriso histérico de compreensão, banhado por lágrimas de ódio, ocupa agora a sua face.

“O que pensas que estás a fazer”, grita.

O negro vulto vira-se para ele, espantado por este ainda ter energia para falar.

“Faço aquilo que tem que ser feito. Algo além da tua compreensão”, responde em tom condescendente como se falasse para uma criança irreverente.

A raiva cresce à medida que o coração de Miguel acelera. O vulto coloca o dedo no gatilho e prepara-se para disparar.

“Adeus.”

Num acto mecânico e inconsciente, Miguel reúne todas as suas forças e ataca o vulto antes deste disparar. A adrenalina que toma agora conta do seu sangue deu-lhe energia para percorrer os metros que os separavam em meros segundos. A força do embate foi tão grande que Sara saiu disparada contra o parapeito, enquanto os dois se lançavam para o vazio.

Miguel conseguiu agarrar-se a uma laje. O seu braço cambaleava com o peso do seu corpo. O vulto negro tinha desaparecido na escuridão da noite. Também Miguel começava a escorregar.

Sara acorda combalida pelo choque. Aproxima-se do parapeito onde Miguel se encontrava.

“Como sei que és tu e não ele?”, pergunta-lhe.

“Deixa o teu coração dar-te a resposta”, responde.

Sara estica os braços para tentar puxar Miguel. A distância entre o parapeito e a laje deixa-a a meros centímetros de o poder ajudar. Mesmo assim, Sara tenta, incapaz de aceitar este desfecho.

“Aguenta, eu vou buscar ajuda”, diz-lhe em desespero.

“Não, não vale a pena, não aguento muito mais”. Ditas estas palavras o seu braço começa a ceder, o esforço inumano de suportar todo o seu peso, aliado ao desgaste do choque com o seu rival são mazelas fatais para a tarefa agora apresentada.

“Sara, eu…”, o esforço força-o a largar antes de concluir a frase. A rebentação dos relâmpagos como que lhe oferecem uma breve benesse, ao iluminar a face de Sara por uma última vez.

Ao cair em direcção ao vazio, Miguel guarda em si uma última certeza. Nunca esteve tão calmo, nunca esteve tão em paz, nunca foi tão feliz. “Sara, agora irei voar”.

O avião preparava-se para descer em direcção ao aeroporto. A viagem já ia longa. Miguel contemplava o céu coberto por um mar de nuvens do mais branco que já tinha visto, prolongando-se ao longo do horizonte.

À medida que o avião atravessava a camada de nuvens, Miguel começou a aperceber-se da precipitação que se acumulava na janela de uma das saídas de emergência sobre a asa, mesmo ao lado de onde ele se encontrava.

Nada fora do normal, não fossem algumas gotas terem começado a escorrer através da janela. A porta estava a perder a sua pressurização.

Miguel tenta chamar a assistente de bordo em vão. O sinal de apertar os cintos de segurança já estava ligado, o avião estava prestes a aterrar e nada mais podia ser feito.

Quando o solo surgiu por entre a espessa camada de nuvens, já a porta tinha começado a ceder. O avião descaía sobre o seu lado esquerdo, descendo a alta velocidade em direcção ao aeroporto. Uma turbulência anormal realçava o ar de apreensão na face dos passageiros.

A própria voz do piloto tremia de nervosismo ao anunciar a aproximação da aterragem. Miguel continuava a olhar pela janela como se não quisesse perder um único pormenor da catástrofe iminente. O avião roçava a copa das árvores, sem diminuir a velocidade.

Já se desenhava a silhueta do aeroporto no horizonte quando a porta rebentou, a pressão de ar puxava Miguel para fora. Preso apenas pelo cinto de segurança, Miguel era testemunha de uma dança de revistas, malas, papéis e canetas a passar rente à sua cara, sugados para o vazio onde ainda há instantes estava uma porta de emergência.

O avião aterrou na pista sobre o lado esquerdo, a asa raspou na pista e partiu-se a meio. A electricidade estática provocada pelo choque fez com que o combustível da asa se incendiasse. O avião derrapou ao longo da pista sem controlo. Miguel manteve-se no seu lugar, evitando os fumos tóxicos que invadiam a cabine.

Sob gritos de morte, fechou os olhos e deixou-se cair na inconsciente graciosidade das suas memórias. Sentiu o seu toque, cheirou o seu cabelo, no seu derradeiro momento de existência viu-a por uma última vez. Chamou-a para os seus braços e deixou-se perder no seu calor.

Sara observava o desastre na gare. Quando o avião finalmente parou a poucos metros da pista de embarque, deixou-se cair em lágrimas assolada por uma terrífica incredulidade. Por um instante sentiu uma mão familiar a confortá-la e aceitou o seu abraço. Quando voltou a abrir os olhos, o avião continuava a arder. Estava só. Apenas só.

Passava pouco das onze da noite. Miguel aguardava no esporão há cerca de duas horas. “Estarei lá. No mesmo local onde fizemos aquela promessa”, já perdia as contas às vezes que tinha lido a última mensagem de Sara.

As horas passavam sem qualquer sinal dela. Miguel aproximou-se da ponta do esporão. “Só mais um pouco”, disse.

Fechou os olhos. O vento envolvia-o num abraço ameno, típica brisa outonal que trazia consigo ainda algum resquício do calor de Verão.

O céu límpido era apenas perturbado por uma ocasional estrela cadente. O desejo, esse, era sempre o mesmo. Apenas mais um momento com ela, poder voltar a segurá-la nos seus braços. Só mais uma oportunidade de mostrar o amor que sente por ela, de o dizer abertamente, sem hesitações, sem mais barreiras ou restrições. Uma última oportunidade de serem apenas um.

Meia-noite. Miguel abriu finalmente os olhos. Suspirou uma última vez antes de olhar em seu redor. Nada. Despiu o casaco, descalçou os sapatos e as meias. Pousou o telemóvel ao seu lado. Nas mãos guardava uma foto de Sara com ele. “Parece ter sido noutra vida”, pensou.

Segurou a foto próxima do seu coração e deixou-se cair.

No ecrã do seu telemóvel reluzia ainda a última mensagem que Sara enviou. A data era de há um ano atrás. Antes do acidente, antes da sua morte. Quando Miguel e Sara ainda eram felizes.

Publicado em 3 de Setembro de 2013

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

XXI

Medo
Palavra escrita nas entrelinhas,
De diálogos ensaiados por estranhos desconhecidos.
Escuridão de ignorância,
Banhada em ouro derretido pela podridão.

Medo
Sentimento negro de aventura,
No breu de uma estrada coberta pela noite.
Terríveis grunhidos de loucura,
Rodeados por árvores caducas de maldição.

Medo
Incertezas de amanhãs,
Emergidas em lama visceral.
Gritos de morte,
Sob silêncios assolados por um nada temeroso.

Medo
Carnívoras intenções,
Auto-flageladas por desejos nervosos.
Escondidos do mais simples olhar,
Em segredos restritos de violações.

Medo
Amor descoberto,
Por uma entrega divinal.
Racionalidades fictícias de certezas incoerentes,
Perdidas em ansiedades de desejos mortais.

Medo
Do futuro, do passado,
De um presente de felicidade.
Receio pelo belo, pela verdade,
Apreensão de amar, apreensão de errar.

Medo
Palavra que nada faz,
Que existe e apenas o é.
Sentimento bloqueador, por entre amarras de calor,
Cuja dor de nada vale, de nada é.

Publicado em 11 de Setembro de 2013