terça-feira, 1 de julho de 2014

Nove Menos Cinco

“Por vezes, quando a beleza inegável de um momento nos absorve, somos envoltos por uma profunda necessidade de o viver, livres de qualquer interferência, imersos em cada um dos seus actos. Naquele instante somos infinitos. Vivemos. E deixamo-lo passar.” Passavam alguns minutos das oito da noite. Estava atrasado, outra vez. A aula de Sistemas Digitais tinha-se alongado, como de costume. O comboio das oito e dezanove já tinha partido. Nada podia fazer se não esperar pelo próximo.

A Estação de Campanhã era fria naquela noite de Novembro em 2009. Felizmente a espera não seria longa. Ansiava pelo jantar ainda distante, e estava só. Bom, não completamente só, trazia comigo a companhia de Umberto Eco, e do seu Pêndulo de Foucault. Da história do livro, pouco me lembro, muito menos ainda das páginas que li naquela breve viagem.

Há anos que a faço. Todos os dias, ida e volta, entre Porto e Ovar. A maioria delas a sós, ora com um livro, ora com música a acompanhar-me. Com o passar dos anos criei mecanismos para me distrair durante a viagem quando um destes companheiros me falhava, ou eu a eles. Perco-me nos meus Mundos de fantasia, alguns deles que acabo por transcrever em contos, poemas ou através de outra qualquer expressão da minha modesta arte. Por vezes limito-me a observar as pessoas que me acompanham nesta viagem. Que histórias contam, o que as trouxe ali, onde vivem, o que fazem, quem são estes estranhos conhecidos que já fazem parte do meu dia-a-dia, como figurantes repetidos numa peça de económica produção.

Sentei-me no banco gelado da plataforma cinco, algumas pessoas já esperavam ali pelo comboio que ainda tardava em chegar. Uma rapariga estava de pé nos limites da plataforma, o seu olhar fixo no horizonte. Vestia um casaco azul, tinha cabelo castanho, liso, não muito longo. De feições simples, era bela na sua simplicidade. Havia algo na sua elegância que a destacava dos restantes. Demorei alguns segundos a observá-la, e esbocei um ligeiro sorriso antes de regressar para as páginas do meu livro.

Quando o comboio finalmente chegou, procurei pelo meu lugar habitual. Na penúltima carruagem, três bancos a contar da porta, do lado esquerdo, sempre do lado esquerdo. Ainda ninguém o tinha ocupado. Sorte, pensei. Sentimento reforçado quando ela escolheu o assento ao meu lado. Ambos retirámos um livro das respectivas mochilas e começámos a ler.

Parte de mim queria encontrar a coragem necessária para falar com ela, mas mais uma vez não me sentia capaz de transportar esta fantasia para a realidade. Concentrei-me no livro, ou pelo menos tentei. Em General Torres entrou um homem, claramente embriagado que se sentou à nossa frente. Destes, já tinha visto muitos, sempre diferentes, sempre a mesma personagem.

Usava roupa gasta, tinha cabelo e barba grisalhos. Normalmente apenas os costumo ver em comboios mais tardios, como o que apanho todas as quartas-feiras no regresso da aula de Russo já depois das dez da noite. Por vezes pedem dinheiro, outras vezes apenas querem falar ou dormir sossegados em um dos assentos. Este gostava de falar.

Concentrei-me no livro e ignorei-o como costumo fazer.

“É muito bom ver dois jovens a ler”, disse ele. Sorri e regressei para a minha leitura. Esta passagem recriava um ritual indígena de comunicação com espíritos através de um oráculo que neste caso, era a mulher do personagem principal.

O homem concentrou as suas atenções na rapariga. Ela apenas acenava, sem lhe dirigir qualquer palavra, anuindo àquilo que ele dizia. Num momento de desespero ele dirigiu-se a ela em inglês. Não tinha aspecto disso, mas fiquei intrigado com a possibilidade dela ser estrangeira.

Chegados a Espinho, o homem levantou-se e despediu-se de nós. Trocámos um olhar e naquele momento arrisquei.

“Did you know him?”, perguntei.

“No. I think he was drunk”, ela respondeu.

Voltei a concentrar-me no meu livro. Não sabia que mais dizer. Felizmente, ela voltou a falar.

“Where are you from?”

No instante em que disse Ovar, fui atropelado por uma onda de riso e espanto, quando ela perguntou, “És português?”.

Algo embaraçado com o caricato da situação, expliquei que, “como ele estava a falar contigo em inglês pensei que pudesses não falar português.”

“Foi? Não tinha reparado nisso, estava a tentar ignorá-lo e concentrar-me no meu livro.”

A rapariga intrigante de uma beleza simples chamava-se Filipa, vivia em Aveiro e estudava Radioterapia na Escola Superior de Tecnologias da Saúde do Porto.

“Somos praticamente colegas, o meu curso era nas mesmas instalações que o teu.”

Os quinze minutos que separam Espinho de Ovar foram passados a falar sobre os nossos cursos, sobre os livros que trazíamos, sobre o futuro que cada um desejava. Foram quinze minutos que passaram num segundo. Quando a Estação de Ovar se aproximou, não queria sair. Queria que o tempo parasse, que a nossa conversa se alongasse no tempo por mais alguns momentos. Mas assim não foi.

Despedimo-nos e levantei-me para sair. Ela deteve-me e disse, “talvez nos voltemos a encontrar neste mesmo comboio.”

Queria explicar-lhe que era raro eu viajar a esta hora. Queria dizer-lhe que tinha adorado a nossa conversa e que não queria que esta ficasse por aqui. Queria ter-lhe pedido o seu contacto. Mas apenas disse, “Talvez”. Sorri e dirigi-me para a porta.

Desci para a plataforma e ali fiquei a ver o comboio partir. O tempo voltou a abrandar até à sua perpétua velocidade de cruzeiro. A Estação de Ovar era fria naquela noite de Outono. Fui assolado por uma mescla de felicidade por aquele momento que só a nós pertencia, e de arrependimento pelas possibilidades que jamais seriam testadas. Senti-a atravessar-me, como se o próprio comboio se tivesse despistado na minha direcção. Um único pensamento emergia do caótico oceano da minha mente.

“Se o Universo assim quiser, um dia voltaremos a nos encontrar.”

Ajustei o casaco e comecei a caminhar para casa. Faltava pouco para as dez e ainda não tinha jantado.

“Estás a gozar? Não lhe pediste o número?” Miguel estava sentado à minha frente. Ouviu a minha história com atenção, até este momento.

Já esperava a sua reacção. “Como disse, não. Eu sei. Eu sei. Já me arrependi o suficiente.”

“Meu, era o mínimo que devias ter feito, deixaste a oportunidade passar!”

“Pensei bastante sobre isso. Nos dias que se seguiram procurei pelo seu rosto por entre a onda habitual de desconhecidos. Mas sem sorte. Com o tempo as minhas recordações dela começaram a esvanecer, e agora não sei se seria capaz de a reconhecer sequer.”

Miguel anuiu e permaneceu em silêncio. Percebia que a sua expressão nutria algum pesar e frustração pelo final inconsequente que tinha acabado de ouvir.

“Mas se queres que seja sincero, acho que é melhor assim”, disse.

“Porquê?”

“Como não nos voltámos a encontrar, nenhum de nós teve tempo para desapontar o outro. Somos eternos naquele momento. Dois desconhecidos, felizes, acabados de se conhecer, imersos numa boa conversa. Se a tivesse voltado a encontrar, toda esta perfeição, toda esta memória, podia ser deturpada pela realidade.”

Ele ponderou um pouco sobre a minha resposta e enfim disse, “Tudo bem, mas não sabes o que podia ter acontecido.”

“Sim, o mais provável é que não fossem capazes de manter a magia que sentiste naquela viagem. Talvez o segundo encontro fosse aborrecido e não se voltassem a falar. Mas é essa a beleza do risco. Não sabes o que o futuro te traz. Por mais que as probabilidades possam parecer estar contra ti, nada está escrito.”

“É fácil pensares que passaste ao lado da tua própria versão do ‘Antes do Amanhecer’, que ela era a tua tal, e que deixaste passar aquela que talvez tenha sido a única oportunidade de alguma vez a encontrares. Talvez ela não passe de mais uma rapariga com quem tiveste uma boa conversa uma vez. Mas a verdade é que nunca irás saber.”

“Nunca irás saber se é ela, ou não. Nunca a vais conhecer. Não arriscaste. O momento passou. Ela agora é uma memória de um momento profundamente belo. Momento esse que por mais que as circunstâncias o tentassem deturpar, ou mesmo que ela própria te desiludisse, será sempre teu e ninguém to poderá tirar.”

Deixei-me absorver pelas suas palavras, e naquele instante tive a realização de que ele estava certo. O momento não teria sido estragado, tivesse eu voltado atrás para lhe pedir o seu contacto. Mesmo que ela mo negasse, pelo menos sabia que aquele momento não passaria dali.

“Tens razão”, enfim disse. “Devia ter arriscado. Por mais que o cinismo da vida se intrometa na nossa felicidade, este não pode mudar as nossas memórias. Ele não pode roubar-nos estes momentos. Eles são eternos. Infinitos. Nossos. Apenas nossos.”

Miguel colocou a sua mão no meu ombro e sorriu. Era um sorriso de compreensão, de aceitação, misturado com algum fatalismo pela tardia resolução que apenas hoje compreendi.

Ficámos em silêncio durante alguns segundos, antes de retomarmos a nossa conversa habitual.

Guardo aquela viagem de comboio como uma das minhas melhores recordações dos longos anos que passei entre Ovar e a Invicta. Hoje sei que pudesse eu voltar àquele instante, antes de me dirigir para a porta, a minha resposta não teria sido um simples “talvez”.