quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A Morte do Herói

Enquanto o Sol se escondia sob a penumbra de um céu enegrecido pelas chamas que queimavam os últimos centímetros de atmosfera, em fúteis tentativas de travar o eminente juízo final que se abatia sobre a Terra, apenas um homem inutilmente se impunha na zona de impacto. Miguel contava os segundos para o fim. Rodeado por uma imensidão de nada os seus últimos pensamentos iam para ela e para a simples claridade de uma única certeza: estava verdadeiramente só.

Os seus olhos disparavam em todas as direcções, em busca de um vulto, de qualquer sinal de movimento, agarrando-se à mais ínfima réstia de esperança, à fé nas palavras de uma velha promessa. Mas nada. As próprias árvores pareciam preparar-se para esta inevitável conclusão. Nada se movia naquela clareira além dos gestos de antecipação deste imprudente rapaz. A solidão deu lugar a breves lágrimas, supridas pela inquietação de uma calma aterradora, típica de alguém refém do seu próprio destino.

Miguel fechou os olhos saboreando o seu último fôlego. Virou a cabeça para cima e abriu-os. Nestes seus últimos segundos, não deixou de se admirar com a irónica beleza da visão que assolava este céu infernal. Ao preparar-se para o choque, viu, por uma última vez, a única memória que ainda lhe restava de um tempo em que era feliz. “Sara…”, com um suspiro largou a sua derradeira palavra, espelho das recordações de uma vida que agora termina. Cerrou novamente os olhos para não mais os abrir.

Ao acordar no chão daquele velho terraço, Miguel levantou-se em um sobressalto. Impulsionado pela chuva que ardia na sua face. Cada gota como uma gélida facada penetrante. Viu-se forçado a cambalear até ao parapeito mais próximo, ainda atordoado pelo choque da queda.

Ele ainda estava ali, o mesmo vulto negro que o tinha espancado até um ponto de quase inconsciência. Agarrava Sara nos seus braços com a arma apontada à sua cabeça. As forças escapavam a Miguel mas tinha que fazer alguma coisa. Não a podia deixar morrer, não ali, não agora, não pelas mãos daquele monstro.

O vulto parecia gabar-se pela vitória alcançada. A rebentação de um relâmpago no horizonte ilumina por breves momentos o breu da noite. Miguel consegue ver com clareza a cara do seu rival. Um sorriso histérico de compreensão, banhado por lágrimas de ódio, ocupa agora a sua face.

“O que pensas que estás a fazer”, grita.

O negro vulto vira-se para ele, espantado por este ainda ter energia para falar.

“Faço aquilo que tem que ser feito. Algo além da tua compreensão”, responde em tom condescendente como se falasse para uma criança irreverente.

A raiva cresce à medida que o coração de Miguel acelera. O vulto coloca o dedo no gatilho e prepara-se para disparar.

“Adeus.”

Num acto mecânico e inconsciente, Miguel reúne todas as suas forças e ataca o vulto antes deste disparar. A adrenalina que toma agora conta do seu sangue deu-lhe energia para percorrer os metros que os separavam em meros segundos. A força do embate foi tão grande que Sara saiu disparada contra o parapeito, enquanto os dois se lançavam para o vazio.

Miguel conseguiu agarrar-se a uma laje. O seu braço cambaleava com o peso do seu corpo. O vulto negro tinha desaparecido na escuridão da noite. Também Miguel começava a escorregar.

Sara acorda combalida pelo choque. Aproxima-se do parapeito onde Miguel se encontrava.

“Como sei que és tu e não ele?”, pergunta-lhe.

“Deixa o teu coração dar-te a resposta”, responde.

Sara estica os braços para tentar puxar Miguel. A distância entre o parapeito e a laje deixa-a a meros centímetros de o poder ajudar. Mesmo assim, Sara tenta, incapaz de aceitar este desfecho.

“Aguenta, eu vou buscar ajuda”, diz-lhe em desespero.

“Não, não vale a pena, não aguento muito mais”. Ditas estas palavras o seu braço começa a ceder, o esforço inumano de suportar todo o seu peso, aliado ao desgaste do choque com o seu rival são mazelas fatais para a tarefa agora apresentada.

“Sara, eu…”, o esforço força-o a largar antes de concluir a frase. A rebentação dos relâmpagos como que lhe oferecem uma breve benesse, ao iluminar a face de Sara por uma última vez.

Ao cair em direcção ao vazio, Miguel guarda em si uma última certeza. Nunca esteve tão calmo, nunca esteve tão em paz, nunca foi tão feliz. “Sara, agora irei voar”.

O avião preparava-se para descer em direcção ao aeroporto. A viagem já ia longa. Miguel contemplava o céu coberto por um mar de nuvens do mais branco que já tinha visto, prolongando-se ao longo do horizonte.

À medida que o avião atravessava a camada de nuvens, Miguel começou a aperceber-se da precipitação que se acumulava na janela de uma das saídas de emergência sobre a asa, mesmo ao lado de onde ele se encontrava.

Nada fora do normal, não fossem algumas gotas terem começado a escorrer através da janela. A porta estava a perder a sua pressurização.

Miguel tenta chamar a assistente de bordo em vão. O sinal de apertar os cintos de segurança já estava ligado, o avião estava prestes a aterrar e nada mais podia ser feito.

Quando o solo surgiu por entre a espessa camada de nuvens, já a porta tinha começado a ceder. O avião descaía sobre o seu lado esquerdo, descendo a alta velocidade em direcção ao aeroporto. Uma turbulência anormal realçava o ar de apreensão na face dos passageiros.

A própria voz do piloto tremia de nervosismo ao anunciar a aproximação da aterragem. Miguel continuava a olhar pela janela como se não quisesse perder um único pormenor da catástrofe iminente. O avião roçava a copa das árvores, sem diminuir a velocidade.

Já se desenhava a silhueta do aeroporto no horizonte quando a porta rebentou, a pressão de ar puxava Miguel para fora. Preso apenas pelo cinto de segurança, Miguel era testemunha de uma dança de revistas, malas, papéis e canetas a passar rente à sua cara, sugados para o vazio onde ainda há instantes estava uma porta de emergência.

O avião aterrou na pista sobre o lado esquerdo, a asa raspou na pista e partiu-se a meio. A electricidade estática provocada pelo choque fez com que o combustível da asa se incendiasse. O avião derrapou ao longo da pista sem controlo. Miguel manteve-se no seu lugar, evitando os fumos tóxicos que invadiam a cabine.

Sob gritos de morte, fechou os olhos e deixou-se cair na inconsciente graciosidade das suas memórias. Sentiu o seu toque, cheirou o seu cabelo, no seu derradeiro momento de existência viu-a por uma última vez. Chamou-a para os seus braços e deixou-se perder no seu calor.

Sara observava o desastre na gare. Quando o avião finalmente parou a poucos metros da pista de embarque, deixou-se cair em lágrimas assolada por uma terrífica incredulidade. Por um instante sentiu uma mão familiar a confortá-la e aceitou o seu abraço. Quando voltou a abrir os olhos, o avião continuava a arder. Estava só. Apenas só.

Passava pouco das onze da noite. Miguel aguardava no esporão há cerca de duas horas. “Estarei lá. No mesmo local onde fizemos aquela promessa”, já perdia as contas às vezes que tinha lido a última mensagem de Sara.

As horas passavam sem qualquer sinal dela. Miguel aproximou-se da ponta do esporão. “Só mais um pouco”, disse.

Fechou os olhos. O vento envolvia-o num abraço ameno, típica brisa outonal que trazia consigo ainda algum resquício do calor de Verão.

O céu límpido era apenas perturbado por uma ocasional estrela cadente. O desejo, esse, era sempre o mesmo. Apenas mais um momento com ela, poder voltar a segurá-la nos seus braços. Só mais uma oportunidade de mostrar o amor que sente por ela, de o dizer abertamente, sem hesitações, sem mais barreiras ou restrições. Uma última oportunidade de serem apenas um.

Meia-noite. Miguel abriu finalmente os olhos. Suspirou uma última vez antes de olhar em seu redor. Nada. Despiu o casaco, descalçou os sapatos e as meias. Pousou o telemóvel ao seu lado. Nas mãos guardava uma foto de Sara com ele. “Parece ter sido noutra vida”, pensou.

Segurou a foto próxima do seu coração e deixou-se cair.

No ecrã do seu telemóvel reluzia ainda a última mensagem que Sara enviou. A data era de há um ano atrás. Antes do acidente, antes da sua morte. Quando Miguel e Sara ainda eram felizes.

Publicado em 3 de Setembro de 2013

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

XXI

Medo
Palavra escrita nas entrelinhas,
De diálogos ensaiados por estranhos desconhecidos.
Escuridão de ignorância,
Banhada em ouro derretido pela podridão.

Medo
Sentimento negro de aventura,
No breu de uma estrada coberta pela noite.
Terríveis grunhidos de loucura,
Rodeados por árvores caducas de maldição.

Medo
Incertezas de amanhãs,
Emergidas em lama visceral.
Gritos de morte,
Sob silêncios assolados por um nada temeroso.

Medo
Carnívoras intenções,
Auto-flageladas por desejos nervosos.
Escondidos do mais simples olhar,
Em segredos restritos de violações.

Medo
Amor descoberto,
Por uma entrega divinal.
Racionalidades fictícias de certezas incoerentes,
Perdidas em ansiedades de desejos mortais.

Medo
Do futuro, do passado,
De um presente de felicidade.
Receio pelo belo, pela verdade,
Apreensão de amar, apreensão de errar.

Medo
Palavra que nada faz,
Que existe e apenas o é.
Sentimento bloqueador, por entre amarras de calor,
Cuja dor de nada vale, de nada é.

Publicado em 11 de Setembro de 2013