quarta-feira, 29 de maio de 2013

L’Heure Bleue

“A hora mais fria da noite faz-se sentir no momento que antecede o amanhecer. A sua escuridão envolve-nos. Sentimo-nos sós, e, nesse momento, nada é mais assustador que a solidão”. Estava frio. A noite mágica começava a dar lugar a uma nova manhã de terça-feira de Carnaval. Miguel sentia o frio nos ossos. Frio apenas amenizado pelo cansaço, pelas horas não dormidas e pelos excessos da noite anterior. 

Disfarçado de Rambo, Miguel arrependia-se de não ter trazido um casaco, ou vestido algo mais quente por baixo do fato. Frio. O sol já começara a nascer mas naquele preciso momento estava mais frio do que na hora mais escura da noite. A maioria dos seus amigos, também eles fantasiados da mesma forma, já tinha partido com destino incerto. Um grupo de oito, desfeito antes mesmo de a noite terminar. Além de Miguel, apenas restavam dois. 

Encontravam-se em frente ao Rio Cáster, sob o abrigo da escadaria do velho Clube de Vídeo. Miguel ainda guardava na sua mão a fartura que por gulosice, ou por simples desejo, os três se lembraram de comprar. 

“Não vais acabar de comer?”, perguntou-lhe Tiago. 

Embora fora sua a ideia, Miguel não estava com fome. Algo o preocupava. Algo o fazia mover. Algo lhe dizia que não devia estar ali.

“Como pelo caminho”, responde. “Já é tarde. Ou melhor, cedo demais”.

“Sim, também acho que já está na hora de voltarmos para casa.” Após dizer isto, o Tiago combinou com o Rui o melhor caminho para regressarem. Os três despediram-se, e Miguel seguiu pela rua acima.

Atravessou a ponte pelo meio da estrada. Apesar da hora, as ruas ainda continuavam fechadas. Ouvia-se música à distância vinda da tenda que, naqueles dias, ocupava o parque de estacionamento da biblioteca. Várias pessoas vagueavam pelas ruas. Menos ou mais alcoolizadas. Vestidas com as mais diversas fantasias, algumas já destruídas pelas peripécias da noite anterior. Grupos animados. Casais, novos, velhos e acabados de se formar, dividiam-se entre discussões e abraços amorosos. Alguns, inconscientes ou com mau aspecto, eram ajudados por voluntários e dirigidos para os postos de socorro. Miguel ignorava tudo isto.

Perdido no caos silencioso dos seus pensamentos, Miguel segue sem objectivo. O frio e o cansaço tomavam conta do seu corpo mas ainda lhe restavam energias suficientes para percorrer o caminho até casa. 

O primeiro obstáculo não tardou a surgir. A subida do Calvário. Subida que dava jus ao seu nome. Tão fácil de ultrapassar num dia normal, mais complicada após uma longa viagem de bicicleta, hoje, impossível. 

Calmamente, Miguel subiu. Passara já a Capela quando, ao longe, começavam finalmente a surgir os primeiros raios de sol. A aurora dava lugar à manhã e o frio que tanto o atormentava começava a ceder. 

Sentada na paragem de autocarro estava uma rapariga vestida de anjo. De profundos olhos verdes, feições belas e um calmo sorriso. Os tons de avelã do seu cabelo reluziam na ténue luz do amanhecer. Não havia autocarros, não àquela hora, não naquele lugar. Ela olhava tranquilamente em redor, como se aguardasse por algo ou por alguém. Uma boleia, um encontro marcado, uma amiga atrasada. Talvez nenhum dos três, talvez apenas teria escolhido aquele banco para descansar antes de, também ela, regressar a casa.

Miguel viu-a. Trocaram um olhar por breves momentos. Breves, pois nem mesmo a sua beleza era capaz de o desviar dos seus pensamentos. Miguel caminhava com um propósito. Fosse ele qual fosse, motivava-o a continuar. 

“É sempre mais escuro antes do amanhecer”, disse a rapariga pouco depois de Miguel passar por ela. Parou. Olhou para ela. Confuso, sem pensar, apenas perguntou: “Fã de Florence and The Machine?” 

A rapariga levantou-se, caminhou para junto de Miguel e parou à sua frente. As asas da sua fantasia moviam-se com uma graciosidade quase divina. As plumas deslizavam ao sabor da brisa matinal. Pareciam maiores agora do que na primeira vez que as viu de relance. O seu vestido era branco, discreto, delineava as formas do seu corpo como se fosse feito à medida. Não usava nenhuma auréola, como seria de esperar num fato deste género, apenas uma coroa de flores brancas. Miguel sabia o seu nome. Sabia, mas não o recordava.

“Não sabes que é rude deixar uma senhora sozinha numa manhã tão fria?”

Miguel, sem resposta, regressava aos poucos à realidade. Perdido na contemplação desta estranha conhecida que tinha agora pela frente, não foi capaz de dizer nada além do seu olhar de confusão e estranheza.

Ela sorriu e pegou-o pelo braço. “Importas-te que te acompanhe? Vejo que seguimos o mesmo caminho.”

“De todo. Eu vivo perto de...” Com um gesto suave ela coloca um dedo sob os seus lábios, interrompendo-o. “Seguimos o mesmo caminho”, sorriu. “Não estragues a surpresa. Eu acompanho-te.”

Perplexo por aquele gesto, Miguel retribuiu o seu sorriso. Já não sentia o cansaço. Também o frio não era agora mais do que uma velha memória prestes a desvanecer nos confins da sua mente.

Caminharam juntos em silêncio durante algum tempo. Miguel era envolvido por um pensamento de certeza. Aquele algo que o motivara a continuar, permanecia no seu consciente, como que a gritar de felicidade por este ter encontrado o seu destino. 

“Algo te preocupa”, disse ela, pondo fim ao vazio de palavras.

“Esperava que isso não fosse tão óbvio”, respondeu.

“Não o é para mim.”

Miguel hesitou, procurando pela melhor forma de contar aquilo que o atormentava. Por fim disse, “Sinto-me oco. Como se o meu poço de inspiração e de imaginação tivesse há muito secado. Falta-me um propósito. Um destino. Algo pelo qual valha a pena lutar. Uma... Uma...”

“Uma história que valha a pena contar”, completou ela com um tom sério de determinação.

“Sim, uma história”, anuiu. Cumplicidade. Sentimento estranho para partilhar com alguém que tinha acabado de conhecer.

“Porque não começas pela base? Pelo básico, pelo princípio?”

“Não consigo começar a contar algo sem saber como termina. Como posso unir as acções dos protagonistas sem uma linha, sem uma continuidade, sem uma história?”

Passavam agora o largo onde em tempos se erguia um quiosque em madeira. Há alguns anos substituíram-no por uma estátua em homenagem a um desportista de quem poucos se recordam. 

Miguel lembra-se das manhãs passadas ali em criança, a caminho da escola. Por vezes parava para comprar uns rebuçados ou uns cromos. Hoje, desse quiosque, apenas restam as suas memórias. Suas, e das árvores que ainda permanecem naquele local, despreocupadas, incólumes e ignorantes dos eventos que por ali foram passando.  

Não sabia explicar como, ou porquê, mas Miguel percebia que ela tinha lido os seus pensamentos.

“Essa é uma história bonita. Triste, mas bonita. O rapaz que tem saudades da sua infância, a criança que chora com a destruição dos seus lugares preferidos. Uma história com início, meio e fim. Uma história que conheces bem.”

“Uma história que poucos quererão ouvir”, respondeu.

“Talvez. Depende de como a contares.”

Miguel hesitou e fechou-se por um instante nos seus pensamentos. “Uma história minha. Apenas uma velha memória. Por mais poética que a tente tornar, há algo que falta a um conto tão simples.”

“Se simples não é algo que procuras, porque não contas uma história mais arrojada? Algo que envolva, mistério, risco e um futuro incerto?”

“Bons ingredientes, difíceis de encontrar.”

Ela parou novamente e virou-se para o encarar. “Estão mesmo à tua frente.”

Sorriu. “Queres que conte a história do dia em que encontrei um anjo só, numa paragem de autocarro?”

“Não, quero que contes a tua história. O teu mistério, os teus riscos, o teu futuro.”

“O meu futuro?”, Miguel retomou o seu caminho, ponderando sobre as palavras que ela lhe acabara de dizer. Pesavam-lhe como se algo se estivesse a abrir dentro dele. Memórias que ele ainda não tinha vivido. Sentimentos de um passado esquecido que ficara por se concretizar. 

Enfim falou. “Em tempos tentei fazê-lo.” Estavam agora a poucos metros da casa de Miguel. Ambos pararam. Ela para o ouvir. Ele para lho dizer.

“Sentei-me dias a fio a contemplar o horizonte. Escrevi. Escrevi. Escrevi. Folhas de papel, amarrotadas pelo vento. Gastei a minha caneta. Mas desapareceram. Todas.” 

“Noites a fio imaginei a minha história, reescrevi as personagens, coloquei-as nas mais variadas situações. Mas nenhuma valeu a pena. Nenhum falou mais alto até àquele dia.” 

“Até aquela tarde em que não a reconheci quando passou ao meu lado. Até aquela tarde em que ela me chamou e nada mais pareceu importar. Até aquela tarde em que folha por folha, cada uma se deixou lavar pelo mar. Cada uma afogada no eterno oceano daquela história que não consegui completar. Que não quis completar. Que não mais voltei a ler. A pensar, ou a escrever. Uma história que acabou sem que eu nunca a tivesse podido contar.”

Lágrimas correram pelo rosto de Miguel. Embora mantivesse a seriedade das suas palavras, as emoções das mesmas assolavam-no e dificultavam a sua respiração. 

A estranha rapariga vestida de anjo que o acompanhara neste longo caminho, não conseguia esconder a sua empatia após tão pesada e crua confissão. Abraçou-o. Envolveu-o nos seus braços. O tempo parou. Nada mais sentiam que não o calor dos seus corpos. Nada mais ouviam que não o bater dos seus corações.

A pouco e pouco, Miguel recuperou o seu fôlego. A tormenta em que se encontrava parecia ter acalmado. As nuvens cinzentas do seu pensamento deram lugar a um céu azul, vivo como aquele que é banhado pelo sol primaveril. O seu poço encheu-se. Sentia-se vivo. Desperto. Tinha encontrado a sua história.

Ela olhou-o nos olhos. As faces de ambos reflectiam uma rara felicidade, indistinta para qualquer um, mas que os ligava profundamente num laço, numa linguagem, que apenas os dois podiam compreender. 

“Estás perto de casa...”, disse ela.

“...e perto de ti”, respondeu.

Sorriu. As suas asas pareciam agora reluzir intensamente, como se uma nova vida tivesse nascido por entre as plumas que as enfeitam. Como se ganhassem novamente vontade para voar. Esperança. Sim. Tudo parecia possível. Naquele momento. Naquele lugar.

“Por agora seguimos um caminho diferente. A noite foi longa. Precisamos de dormir.”

Palavras que o empurraram de regresso à realidade daquele dia que, por momentos, não parecera ser mais que um sonho.

Miguel queria pedir-lhe para ficar. Para falarem. Para que aquele momento não acabasse por ali. 

Não o fez. Compreendia. Voltara a sentir o seu cansaço. O sono. O frio. Anuiu.

“Posso acompanhar-te até tua casa”, disse.

“Esse caminho apenas eu o posso fazer. Não te preocupes. Ver-nos-emos em breve”, sorriu.

Miguel sabia que o que ela dizia era verdade. Sabia que esta história não ia terminar desta forma.

Despediram-se. Miguel dirigiu-se para casa. Mas, enquanto procurava as suas chaves, voltou para trás para a chamar.

“Não me disseste o teu nome.”

“Sara. Da próxima vez não te esqueças de trazer o teu casaco, Miguel. O cavalheirismo demanda que o ofereças a uma senhora a morrer de frio numa manhã como estas.”

Ambos se riram com aquela despedida. Miguel não questionou o facto dela saber o seu nome. No fundo ele sempre soubera o dela. 

Sara, ecoava na sua mente, como uma boa memória há muito guardada no seu coração, como uma recordação de um futuro ainda por viver que, finamente, ressurgia após um longo período de escuridão.

Miguel estava finalmente em casa. É mais escuro antes do amanhecer. A hora azul. A hora mais fria da noite. O prólogo mais quente de uma história que é sua. De uma história que ele não podia imaginar. De uma manhã mágica que o despertou para o caminho que tinha agora que seguir.

“Sara, nome tão simples, mas tão belo. Estou em casa, mas, hoje, estou tão perto de ti.”


Publicado em 15 de Setembro de 2013

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Alexandre Rosas: “A fome que tenho, às vezes até exagerada, é sem dúvida de uma dedicação total ao Carnaval”

Cartaz Carnaval de Ovar 2009, por Alexandre Rosas
Cinco vezes vencedor do concurso do cartaz de Carnaval de Ovar, Alexandre Rosas confessa ao Praça Pública os segredos por detrás deste sucesso. Como pano de fundo a oficina onde são criados os cartazes do vencedor da Vitamina da Alegria de 2009, o designer mostrou ser um verdadeiro aficionado do Carnaval Vareiro.

A primeira vez [que venci a competição do Cartaz de Carnaval] vale um mundo! Pode-se dizer que era um sonho de criança.

Praça Pública: Foi o vencedor do concurso do cartaz de Carnaval deste ano. O que o inspirou na criação do cartaz?

Alexandre Rosas: É complicado falar em Carnaval. É sempre um palhaço ou uma ilustração, e este ano tentei pensar em alguma coisa que de facto mostre o nosso carnaval. Este ano optei pela noite mágica, um evento que a fundação do Carnaval está a apostar bastante e portanto foi por aí que comecei o meu trabalho. A noite mágica significa exactamente aquilo que eu tento transmitir no cartaz. A diversidade das pessoas e dos vestimentos, desde o mais elaborado ao mais prático. Da pessoa que faz a sua máscara e que se fantasia de um animal ao outro tão simples que pega numa ligadura e num bocado de tintura e vai como se fosse um ferido. Todas as personagens que eu represento são uma tentativa de mostrar às pessoas o que se faz nos bastidores e que é a já famosa, noite mágica.

PP: Como é vencer cinco vezes este concurso?

AR: [Risos] A primeira vez vale um mundo! Pode-se dizer que era um sonho de criança. Sempre admirei estas artes e sempre apreciei quem as faz, e os cartazes em particular, seja de carnaval, seja doutro evento qualquer. Inicialmente era um sonho que tinha de miúdo e neste momento vencer cinco vezes já não me diz nada. Diz-me apenas que tenho evoluído em termos profissionais. Tento ser o mais original possível de forma a dignificar o Carnaval de Ovar, e a transmitir a melhor mensagem e da melhor forma. Claro que há o prémio e isso também conta, mas mesmo que não houvesse concorria na mesma, com a mesma atitude e com a mesma forma de trabalho. Fico sempre satisfeito se me for dada esta responsabilidade de divulgar o Carnaval de Ovar.

PP: Qual é a reacção que as pessoas costumam ter aos seus cartazes?

AR: Este ano, felizmente, tem sido bastante boa. Foi um dos melhores trabalhos que fiz, ou, pelo menos, que mais tempo dediquei. Foi dos cartazes que mais elaborei e que mais trabalho me deu. Há sempre a crítica, e se ela for positiva é sempre bem vinda e é com isso que eu tenho aprendido. Nestes tais cinco anos em que tenho ganho os cartazes tem havido uma evolução, em parte, graças à crítica que fazem. Depois há a crítica destrutiva de quem, enfim, por algum motivo não gosta. Nunca dei grande importância a isso apenas foquei aquelas que são as críticas mais importantes, que são construtivas, e aprendi com isso. Já dos amigos mais próximos, há sempre a satisfação por verem o meu trabalho ganhador, com o 1.º prémio. Dos colegas de trabalho há um cumprimento, há um reconhecimento, enfim, é sempre bom. É uma sensação boa saber que o trabalho é apreciado.

Sou uma das pessoas que vive o Carnaval e que defende a tradição e todas as marcas do Carnaval de Ovar.

PP: Como define o seu estilo em termos de design e dos cartazes que faz?

AR: O meu estilo... [risos] É um pouco inato. Eu faço um pouco de tudo, adapto-me bem ao tipo de trabalho e ao género de trabalho que tenho de fazer. Sem dúvida nenhuma este trabalho que apresentei este ano é a minha imagem, é a minha expressão. Talvez me defina através dos bonecos, com a expressão, com o exagero. Principalmente a expressão, o movimento. O que tento fazer é de facto não só um cartaz que não passe de um cartaz, mas um que seja algo que amigos e que os tais críticos já consigam dizer que reconhecem ser o meu trabalho. Cor, animação, alegria, esse tal movimento que simboliza o meu trabalho puro. Aquilo que eu realmente gosto de fazer, aquilo que eu realmente acho que tenho mais vocação é para este género de ilustração, como a que apresentei este ano.

PP: Acha que os seus cartazes reflectem, de certa forma, a História do Carnaval de Ovar?

AR: Eu pessoalmente penso que sim. E esta acaba por pegar em termos que são sem dúvida os termos principais do Carnaval de Ovar. Devo falar no cartaz do ano passado, embora por poucos entendido, infelizmente, porque de certo modo não o associaram à imagem tão antiga do Carnaval que é o dominó. Eu apresento a noite mágica este ano, apresentei o Rei há 2 anos, nos outros anos houve anos em que apresentei cartazes mais virados para a música, mas de uma forma geral tento ir aos temas que definem o Carnaval. Sou uma das pessoas que vive o Carnaval e que defende a tradição e todas as marcas do Carnaval de Ovar. Se recuarmos há uns anos atrás, vemos os cartazes de artistas como o José Penicheiro, que faziam ilustração, e notamos que são poucos os que se vêem com imagem. É claro que os tempos evoluíram, as técnicas e os desenhos também, e portanto acho que de facto os meus cartazes focam um pouco do que é a História do Carnaval.

PP: Que futuro podemos esperar dos cartazes do Alexandre Rosas?

AR: O meu futuro só Deus sabe. Mas em termos profissionais, continuo a lutar para alcançar os meus objectivos pessoais que são muito simples: ter trabalho e dedicar-me àquilo que gosto. Em relação aos cartazes é um pouco difícil, por que se eu hoje faço uma ilustração, amanhã estou virado para outra coisa qualquer e apresento uma coisa diferente. Podem sempre ter cor e alegria, que eu acho que é a base do Carnaval. É difícil dizer o que vem por aí. é um pouco como a música, como a moda. Julgo que vou tentar, ano após ano, ser inovador e tentar trazer coisas novas.

PP: De certa forma está a tornar-se numa figura do Carnaval de Ovar, que aspectos acha que deve melhorar e que aspectos acha que já estão estabelecidos?

AR: Não sou propriamente uma figura do Carnaval de Ovar, sou alguém que trabalha muito no Carnaval de Ovar. Não só na participação do cartaz, este ano também participei no concurso do dominó. Participo no carnaval activamente como grupo, como elemento da própria fundação no Concelho Consultivo e portanto sou uma pessoa que dedica muito do seu tempo ao Carnaval. Gosto das tradições de Ovar, nomeadamente do Carnaval. O futuro do Carnaval penso que está um pouco difícil por questões financeiras. Há mais exigência, há mais qualidade, as pessoas já não abdicam disso mesmo. Há outro tipo de eventos que nos rodeiam, desde Estarreja a St.ª Maria da Feira, que já têm um grau de qualidade muito grande e portanto nós não podemos deixar esse comboio. Na nossa arte, não digo isto por ser de Ovar, mas por aquilo que tenho visto, temos artistas fantásticos que fazem coisas extraordinárias, e que muitas das vezes não são apreciados. Acho que deviam valorizar isso mesmo no sentido de tentar que com menos dinheiro, mas com outros meios, conseguir-se um futuro risonho para o Carnaval de Ovar. Como elemento do carnaval sei das dificuldades que temos para poder trabalhar, que cada vez são mais. Há falta de dinheiro e dificuldades das instalações. Com a Aldeia do Carnaval existe a possibilidade de darmos um passo significativo em termos de qualidade, nomeadamente nos carros alegóricos. As pessoas de Ovar devem fazer do Carnaval a festa da cidade.

PP: Para terminar, já referiu de certas formas a sua maneira pessoal de viver o Carnaval. Mas, mais pormenorizadamente, como vive o Carnaval de Ovar?

AR:
[Risos] Eu vivo-o até à exaustão com exageros em algumas partes. Abdico de muita coisa como a família, a esposa, a mãe, o sobrinho e amigos que não os meus amigos de carnaval, como eu lhes costumo chamar. Abdico de muitas horas de sono e passo muitas horas a pensar naquilo que existe para fazer, com o objectivo de representar o Carnaval da melhor forma possível. O final do Carnaval é dos momentos mais tristes. São dois meses em que estamos todos os dias juntos, um grupo de pessoas, e onde se criam laços que depois parece que desatam, que acabam. As pessoas seguem as suas vidas como faziam antes do Carnaval e, infelizmente, esses tempos passam e volta tudo ao normal. Mas a fome que tenho, às vezes até exagerada, é sem dúvida de uma dedicação total ao Carnaval.

Entrevista para o Jornal Praça Pública e para a PraçaTV
Publicado em 2 de Setembro de 2013

Rei Artur abre o coração aos seus súbditos

Rei e Rainha do Carnaval, Foto: Adriano Cerqueira
Artur Almeida, também conhecido por Artur Loureiro, é este ano o folião com a responsabilidade de carregar a coroa da maior festa da cidade de Ovar. Entre um café digno de “corte” e os demais compromissos “reais” el-Rey Artur Loureiro cedeu algum tempo ao Praça Pública para comentar o actual momento do Carnaval de Ovar.

“Nunca pensei, mas já estou ligado ao Carnaval desde os anos 30. Saía todas as noites a partir praticamente do Natal. Chegamos a sair uma vez no dia 27 de Dezembro, do ano anterior ao ano do Carnaval. Eu sou um rapaz novo e sinto-me em forma para o Carnaval, gosto de conviver, gosto do meu reinado e de ser folião”, confessa Artur Almeida.

Sobre a recente coroação, el-Rey apenas afirma que “talvez este convite devesse ter sido feito mais cedo”. Artur Almeida promete viver o seu reinado com “boa disposição, optimismo” e “dar o possível e o impossível, com orgulho daquilo que os meus súbditos fizerem, desde que não faltem aos compromissos e que cumpram as regras do reinado.”

Não só de memórias de bons tempos passados entre camaradas recorda Artur Loureiro, os tempos do antigo regime, impunham algumas restrições ao Carnaval, que nem sempre eram cumpridas por este folião.

“Antes do 25 de Abril não se podia passar pela praça. Fazíamos as nossas noitadas, saiamos depois do Natal e não saiamos junto à Praça. Íamos ao café, pela rua do Carvalho, só depois da ponte do rio Cáster é que começávamos a desfilar e a fazer barulho, vestidos de lençóis brancos, a fazer de bruxas. Só a partir daí é que a Arruela e a Estação, faziam essas noitadas todas pelo grupo dos Campos, porque não era permitido andarmos de noite pela rua a fazer barulho”, relembra.

Os velhos tempos obrigavam os festivaleiros a fazer os seus próprios fatos, dando asas à originalidade com o pouco material que tinham disponível. “O Carnaval de hoje em dia é mais sofisticado, há mais possibilidades de o fazer, com materiais muito mais fáceis de arranjar. Antigamente nós fazíamos com aquilo que tínhamos à nossa frente. Fazíamos as indumentarias, mas quando chovia, o papel diluía. Isto antes do Carnaval organizado, fazíamos os fatos em noites em que o Carnaval era no Cineteatro, na sociedade mercantil, na estação, nos bares do Salvador, e mais tarde no café Progresso. Lembro-me de ir com os meus pais ao Mercantil quando era pequeno”, recorda Artur Almeida.

O actual coroado do grande corso vareiro, viveu os tempos do velho Carnaval sujo, muito à semelhança da tradicional “Tomatina”de Buñol, em Espanha. “O Carnaval sujo teve uma data, teve uma época, hoje em dia já não pode ser assim. O Carnaval é mais comercializado e é para fazer publicidade. Já não se pode brincar ao Carnaval. Acabou o jardim em frente ao chafariz Neptuno, onde na terça-feira de carnaval, depois das seis da tarde, quem estivesse a assistir, assistia, com as consequências que isso representava e quem não queria não se metia”. El-Rey diz ainda ter-se “perdido a tradição”. “Hoje o Carnaval envolve muito dinheiro. Antigamente era mais fácil, digamos assim. Hoje tem que ser assistido, e quem quiser ver tem que se sujeitar a pagar”, critica.

Anunciada a construção da Aldeia do Carnaval, Artur Almeida vê com bons olhos a evolução do Carnaval de Ovar, sugerindo ainda uma menor preocupação com o consumo de álcool, pelo menos dentro das “muralhas” vareiras. “O Carnaval de Ovar vai evoluir e tem que ter um caminho longo para fazer uma representação do concelho. Representando cada freguesia com o género carnavalesco. Era engraçado que todas as freguesias participassem, o que iria aumentar o espírito do carnaval de Ovar.”

“Relativamente à questão da aldeia do carnaval, já devia ter sido feita há muito tempo. Antigamente, há noite saíamos a todos os grupos e visitávamos. Não havia a questão do transporte, andávamos de sede em sede sem sermos assediados. Hoje é difícil fazer-se isso. Quem anda no Carnaval a beber água? Ninguém! Vinho tinto e do bom, como dizia, as carnes só se conservam em vinho e não em água! Por conseguinte, nós somos perseguidos pela polícia. Por que é que somos perseguidos dentro de Ovar, quando temos aqui uma festa vareira? Para mim, a própria Comissão do Carnaval devia interferir no assunto para chegar a um consenso com a polícia cá dentro. Facilitar o consumo de álcool, não em excesso mas dentro dos limites mínimos ou máximos”, confessa.

Para finalizar a análise de sua majestade à grande festa que é o Carnaval vareiro, el-Rey Artur Almeida deixa a seguinte mensagem a todos os seus fieis súbditos: “Que todos gozem o Carnaval com muito boa disposição, façam uma excepção à juventude que se predisponha à boa disposição, e que viva o Carnaval à sua maneira e à vontade”.

Notícia publicada no Jornal Praça Pública
Publicado em 5 de Setembro de 2013