“A
hora mais fria da noite faz-se sentir no momento que antecede o
amanhecer. A sua escuridão envolve-nos. Sentimo-nos sós, e, nesse
momento, nada é mais assustador que a solidão”. Estava frio. A noite
mágica começava a dar lugar a uma nova manhã de terça-feira de Carnaval.
Miguel sentia o frio nos ossos. Frio apenas amenizado pelo cansaço,
pelas horas não dormidas e pelos excessos da noite anterior.
Disfarçado
de Rambo, Miguel arrependia-se de não ter trazido um casaco, ou vestido
algo mais quente por baixo do fato. Frio. O sol já começara a nascer
mas naquele preciso momento estava mais frio do que na hora mais escura
da noite. A maioria dos seus amigos, também eles fantasiados da mesma
forma, já tinha partido com destino incerto. Um grupo de oito, desfeito
antes mesmo de a noite terminar. Além de Miguel, apenas restavam dois.
Encontravam-se
em frente ao Rio Cáster, sob o abrigo da escadaria do velho Clube de
Vídeo. Miguel ainda guardava na sua mão a fartura que por gulosice, ou
por simples desejo, os três se lembraram de comprar.
“Não vais acabar de comer?”, perguntou-lhe Tiago.
Embora
fora sua a ideia, Miguel não estava com fome. Algo o preocupava. Algo o
fazia mover. Algo lhe dizia que não devia estar ali.
“Como pelo caminho”, responde. “Já é tarde. Ou melhor, cedo demais”.
“Sim,
também acho que já está na hora de voltarmos para casa.” Após dizer
isto, o Tiago combinou com o Rui o melhor caminho para regressarem. Os
três despediram-se, e Miguel seguiu pela rua acima.
Atravessou
a ponte pelo meio da estrada. Apesar da hora, as ruas ainda continuavam
fechadas. Ouvia-se música à distância vinda da tenda que, naqueles
dias, ocupava o parque de estacionamento da biblioteca. Várias pessoas
vagueavam pelas ruas. Menos ou mais alcoolizadas. Vestidas com as mais
diversas fantasias, algumas já destruídas pelas peripécias da noite
anterior. Grupos animados. Casais, novos, velhos e acabados de se
formar, dividiam-se entre discussões e abraços amorosos. Alguns,
inconscientes ou com mau aspecto, eram ajudados por voluntários e
dirigidos para os postos de socorro. Miguel ignorava tudo isto.
Perdido
no caos silencioso dos seus pensamentos, Miguel segue sem objectivo. O
frio e o cansaço tomavam conta do seu corpo mas ainda lhe restavam
energias suficientes para percorrer o caminho até casa.
O
primeiro obstáculo não tardou a surgir. A subida do Calvário. Subida
que dava jus ao seu nome. Tão fácil de ultrapassar num dia normal, mais
complicada após uma longa viagem de bicicleta, hoje, impossível.
Calmamente,
Miguel subiu. Passara já a Capela quando, ao longe, começavam
finalmente a surgir os primeiros raios de sol. A aurora dava lugar à
manhã e o frio que tanto o atormentava começava a ceder.
Sentada
na paragem de autocarro estava uma rapariga vestida de anjo. De
profundos olhos verdes, feições belas e um calmo sorriso. Os tons de
avelã do seu cabelo reluziam na ténue luz do amanhecer. Não havia
autocarros, não àquela hora, não naquele lugar. Ela olhava
tranquilamente em redor, como se aguardasse por algo ou por alguém. Uma
boleia, um encontro marcado, uma amiga atrasada. Talvez nenhum dos três,
talvez apenas teria escolhido aquele banco para descansar antes de,
também ela, regressar a casa.
Miguel
viu-a. Trocaram um olhar por breves momentos. Breves, pois nem mesmo a
sua beleza era capaz de o desviar dos seus pensamentos. Miguel caminhava
com um propósito. Fosse ele qual fosse, motivava-o a continuar.
“É
sempre mais escuro antes do amanhecer”, disse a rapariga pouco depois
de Miguel passar por ela. Parou. Olhou para ela. Confuso, sem pensar,
apenas perguntou: “Fã de Florence and The Machine?”
A
rapariga levantou-se, caminhou para junto de Miguel e parou à sua
frente. As asas da sua fantasia moviam-se com uma graciosidade quase
divina. As plumas deslizavam ao sabor da brisa matinal. Pareciam maiores
agora do que na primeira vez que as viu de relance. O seu vestido era
branco, discreto, delineava as formas do seu corpo como se fosse feito à
medida. Não usava nenhuma auréola, como seria de esperar num fato deste
género, apenas uma coroa de flores brancas. Miguel sabia o seu nome.
Sabia, mas não o recordava.
“Não sabes que é rude deixar uma senhora sozinha numa manhã tão fria?”
Miguel,
sem resposta, regressava aos poucos à realidade. Perdido na
contemplação desta estranha conhecida que tinha agora pela frente, não
foi capaz de dizer nada além do seu olhar de confusão e estranheza.
Ela sorriu e pegou-o pelo braço. “Importas-te que te acompanhe? Vejo que seguimos o mesmo caminho.”
“De
todo. Eu vivo perto de...” Com um gesto suave ela coloca um dedo sob os
seus lábios, interrompendo-o. “Seguimos o mesmo caminho”, sorriu. “Não
estragues a surpresa. Eu acompanho-te.”
Perplexo
por aquele gesto, Miguel retribuiu o seu sorriso. Já não sentia o
cansaço. Também o frio não era agora mais do que uma velha memória
prestes a desvanecer nos confins da sua mente.
Caminharam
juntos em silêncio durante algum tempo. Miguel era envolvido por um
pensamento de certeza. Aquele algo que o motivara a continuar,
permanecia no seu consciente, como que a gritar de felicidade por este
ter encontrado o seu destino.
“Algo te preocupa”, disse ela, pondo fim ao vazio de palavras.
“Esperava que isso não fosse tão óbvio”, respondeu.
“Não o é para mim.”
Miguel
hesitou, procurando pela melhor forma de contar aquilo que o
atormentava. Por fim disse, “Sinto-me oco. Como se o meu poço de
inspiração e de imaginação tivesse há muito secado. Falta-me um
propósito. Um destino. Algo pelo qual valha a pena lutar. Uma... Uma...”
“Uma história que valha a pena contar”, completou ela com um tom sério de determinação.
“Sim, uma história”, anuiu. Cumplicidade. Sentimento estranho para partilhar com alguém que tinha acabado de conhecer.
“Porque não começas pela base? Pelo básico, pelo princípio?”
“Não
consigo começar a contar algo sem saber como termina. Como posso unir
as acções dos protagonistas sem uma linha, sem uma continuidade, sem uma
história?”
Passavam
agora o largo onde em tempos se erguia um quiosque em madeira. Há
alguns anos substituíram-no por uma estátua em homenagem a um
desportista de quem poucos se recordam.
Miguel
lembra-se das manhãs passadas ali em criança, a caminho da escola. Por
vezes parava para comprar uns rebuçados ou uns cromos. Hoje, desse
quiosque, apenas restam as suas memórias. Suas, e das árvores que ainda
permanecem naquele local, despreocupadas, incólumes e ignorantes dos
eventos que por ali foram passando.
Não sabia explicar como, ou porquê, mas Miguel percebia que ela tinha lido os seus pensamentos.
“Essa
é uma história bonita. Triste, mas bonita. O rapaz que tem saudades da
sua infância, a criança que chora com a destruição dos seus lugares
preferidos. Uma história com início, meio e fim. Uma história que
conheces bem.”
“Uma história que poucos quererão ouvir”, respondeu.
“Talvez. Depende de como a contares.”
Miguel
hesitou e fechou-se por um instante nos seus pensamentos. “Uma história
minha. Apenas uma velha memória. Por mais poética que a tente tornar,
há algo que falta a um conto tão simples.”
“Se
simples não é algo que procuras, porque não contas uma história mais
arrojada? Algo que envolva, mistério, risco e um futuro incerto?”
“Bons ingredientes, difíceis de encontrar.”
Ela parou novamente e virou-se para o encarar. “Estão mesmo à tua frente.”
Sorriu. “Queres que conte a história do dia em que encontrei um anjo só, numa paragem de autocarro?”
“Não, quero que contes a tua história. O teu mistério, os teus riscos, o teu futuro.”
“O
meu futuro?”, Miguel retomou o seu caminho, ponderando sobre as
palavras que ela lhe acabara de dizer. Pesavam-lhe como se algo se
estivesse a abrir dentro dele. Memórias que ele ainda não tinha vivido.
Sentimentos de um passado esquecido que ficara por se concretizar.
Enfim
falou. “Em tempos tentei fazê-lo.” Estavam agora a poucos metros da
casa de Miguel. Ambos pararam. Ela para o ouvir. Ele para lho dizer.
“Sentei-me
dias a fio a contemplar o horizonte. Escrevi. Escrevi. Escrevi. Folhas
de papel, amarrotadas pelo vento. Gastei a minha caneta. Mas
desapareceram. Todas.”
“Noites
a fio imaginei a minha história, reescrevi as personagens, coloquei-as
nas mais variadas situações. Mas nenhuma valeu a pena. Nenhum falou mais
alto até àquele dia.”
“Até
aquela tarde em que não a reconheci quando passou ao meu lado. Até
aquela tarde em que ela me chamou e nada mais pareceu importar. Até
aquela tarde em que folha por folha, cada uma se deixou lavar pelo mar.
Cada uma afogada no eterno oceano daquela história que não consegui
completar. Que não quis completar. Que não mais voltei a ler. A pensar,
ou a escrever. Uma história que acabou sem que eu nunca a tivesse podido
contar.”
Lágrimas
correram pelo rosto de Miguel. Embora mantivesse a seriedade das suas
palavras, as emoções das mesmas assolavam-no e dificultavam a sua
respiração.
A
estranha rapariga vestida de anjo que o acompanhara neste longo
caminho, não conseguia esconder a sua empatia após tão pesada e crua
confissão. Abraçou-o. Envolveu-o nos seus braços. O tempo parou. Nada
mais sentiam que não o calor dos seus corpos. Nada mais ouviam que não o
bater dos seus corações.
A
pouco e pouco, Miguel recuperou o seu fôlego. A tormenta em que se
encontrava parecia ter acalmado. As nuvens cinzentas do seu pensamento
deram lugar a um céu azul, vivo como aquele que é banhado pelo sol
primaveril. O seu poço encheu-se. Sentia-se vivo. Desperto. Tinha
encontrado a sua história.
Ela
olhou-o nos olhos. As faces de ambos reflectiam uma rara felicidade,
indistinta para qualquer um, mas que os ligava profundamente num laço,
numa linguagem, que apenas os dois podiam compreender.
“Estás perto de casa...”, disse ela.
“...e perto de ti”, respondeu.
Sorriu.
As suas asas pareciam agora reluzir intensamente, como se uma nova vida
tivesse nascido por entre as plumas que as enfeitam. Como se ganhassem
novamente vontade para voar. Esperança. Sim. Tudo parecia possível.
Naquele momento. Naquele lugar.
“Por agora seguimos um caminho diferente. A noite foi longa. Precisamos de dormir.”
Palavras que o empurraram de regresso à realidade daquele dia que, por momentos, não parecera ser mais que um sonho.
Miguel queria pedir-lhe para ficar. Para falarem. Para que aquele momento não acabasse por ali.
Não o fez. Compreendia. Voltara a sentir o seu cansaço. O sono. O frio. Anuiu.
“Posso acompanhar-te até tua casa”, disse.
“Esse caminho apenas eu o posso fazer. Não te preocupes. Ver-nos-emos em breve”, sorriu.
Miguel sabia que o que ela dizia era verdade. Sabia que esta história não ia terminar desta forma.
Despediram-se. Miguel dirigiu-se para casa. Mas, enquanto procurava as suas chaves, voltou para trás para a chamar.
“Não me disseste o teu nome.”
“Sara.
Da próxima vez não te esqueças de trazer o teu casaco, Miguel. O
cavalheirismo demanda que o ofereças a uma senhora a morrer de frio numa
manhã como estas.”
Ambos se riram com aquela despedida. Miguel não questionou o facto dela saber o seu nome. No fundo ele sempre soubera o dela.
Sara,
ecoava na sua mente, como uma boa memória há muito guardada no seu
coração, como uma recordação de um futuro ainda por viver que,
finamente, ressurgia após um longo período de escuridão.
Miguel
estava finalmente em casa. É mais escuro antes do amanhecer. A hora
azul. A hora mais fria da noite. O prólogo mais quente de uma história
que é sua. De uma história que ele não podia imaginar. De uma manhã
mágica que o despertou para o caminho que tinha agora que seguir.
“Sara, nome tão simples, mas tão belo. Estou em casa, mas, hoje, estou tão perto de ti.”
Publicado em 15 de Setembro de 2013