quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Romance às Portas de Amesterdão

Amesterdão: Liberdade, drogas, prostituição, noite. Por mais que tentem convencer a vossa cara-metade que apenas querem lá ir para ver os quadros de Van Gogh, visitar o Madame Tussauds, passear pelos canais e sentir a melancólica atmosfera da Casa de Anne Frank, desenganem-se. Ela não vai acreditar. Não vale a pena sequer dizer que os jogos do Ajax, e o Hard Rock Café, são os únicos pedaços da vida nocturna da capital holandesa que têm ideias de experimentar. Se vais a Amesterdão, vais acabar a noite no Red Light District. Quer queiras, quer não, é inevitável.

Como resolver esta situação e conjugar o melhor dos dois mundos? A solução mais simples é levá-la contigo e aproveitar a viagem para cultivar o romance na vossa relação.

Santpoort Noord - Holanda - (foto de Adriano Cerqueira para o blog Vontade de Viajar)

Santpoort Noord, contraste e relaxamento

Espera aí. Romance? “Essa é provavelmente a última palavra que alguma vez pensei ver associada a Amesterdão”, pensas tu. Mas a poucos quilómetros dessa “metrópole do pecado”, encontras Santpoort Noord. Uma pequena cidade nos arredores de Haarlem. Rodeada por floresta, parques verdejantes, e a pouca distância da praia, esta pacata localidade não tem um único prédio acima de três andares.

Caracterizada pela típica arquitectura holandesa, Santpoort é uma comunidade de casas individuais, com estradas em tijolo, ciclovias e trilhos para caminhadas. A maioria das casas tem um jardim à sua volta e grandes “montras” em lugar de janelas. Não estranhem ver as famílias locais a conviverem calmamente nas suas salas, como se estivessem a expor a sua vida privada para quem por ali passa. É um acto normal para eles, contudo, é considerada má educação, ficarem ali parados a olhar. Controlem o vosso instinto de voyeurismo e, simplesmente, ignorem.


Subir para a Praia, e Nortadas a sério

Se caminhar pela floresta e andar de bicicleta não é bem do vosso agrado, podem sempre ir passear à praia. Durante o Verão, especialmente no final de Julho, é comum organizarem-se luaus, e outras festas junto ao mar. As praias holandesas são bem diferentes daquelas que podem encontrar em Portugal ou Espanha. Antes de chegarem ao mar, passam por enormes morros, ou diques, que separam a constante ameaça das ondas dos restantes terrenos. Afinal de contas existe um motivo para se chamarem Países Baixos. Sabem como normalmente têm que descer para ir à praia? Em Santpoort têm que subir!

Assim que lá chegam, o primeiro obstáculo que vão sentir é o vento. Se pensam que as nortadas são más, é porque nunca passaram por isto. A erosão provocada pelo vento é tão forte que a própria areia parece farinha. Muito agradável de se sentir por entre os dedos dos pés, mas pouco prática para o típico veraneante que gosta de torrar ao sol, e dar um ocasional mergulho no mar.


Por entre Moinhos e Tulipas

Mesmo no centro de Santpoort podem encontrar o Brasserie De Wildeman, um pub com esplanada que também serve refeições. Um bom espaço para relaxarem, acompanhados por uma cerveja Amstel. Podem também experimentar a típica comida holandesa. Muito à base de fritos, não é a mais saudável, confesso, mas não é má de todo.

A região de Haarlem é famosa pelos seus moinhos e plantações de tulipas. Se visitarem durante a Primavera, vão ser maravilhados por campos coloridos que se estendem até ao horizonte. Se for o caso, aconselho-vos a alugarem um carro para poderem explorar bem essa região. Um bom espaço para o fotógrafo amador iniciar um portfólio florido para partilhar com os seus amigos.

Foto: Adriano Cerqueira

De Weyman, o fim ideal para um dia perfeito

Cansados após um longo dia de passeio? A noite de Amesterdão deixou-vos de rastos? Nada como o Hotel De Weyman. O local ideal para relaxarem e passarem uma noite calma a dois. Por fora, De Weyman quase que passa por mais uma casa holandesa, contudo, é bastante espaçoso. Os donos são simpáticos, falam um inglês fluente, e estão sempre disponíveis para vos ajudar. O próprio Hotel tem um bar, e também serve refeições.

Cheiraram as tulipas, passearam pela praia, e beberam uma Amstel no De Wildeman. Está na hora de finalmente darem um salto a Amesterdão. Embora ir de carro possa parecer uma opção mais cómoda. Os vossos bolsos vão agradecer se forem de comboio. Os parques de estacionamento em Amesterdão, embora comuns, são excessivamente caros. Em algumas zonas, podem mesmo chegar a cobrar seis euros por hora. Os comboios entre Santpoort Noord e a capital holandesa são bastante regulares, e a viagem não demora mais de meia hora.

Santpoort Noord é uma agradável alternativa à confusão metropolitana de Amsterdão. Um contraste improvável entre uma noite boémia, e umas férias românticas, a poucos quilómetros de distância.

Publicado em 25 de Setembro de 2013 no Blogue Vontade de Viajar
Reeditado em 10 de Outubro de 2013

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Eurotrip: Prólogo

“Não o consigo acompanhar. Não com este ritmo”. O cansaço apoderava-se de mim. As minhas energias escoavam pela sola das sapatilhas. Cada passo que emergia sob o suave piso laranja deste circuito de manutenção, sentia-o como um martírio contínuo, sem fim à vista. Pura estamina e força de vontade. Nada mais me fazia seguir em frente. A mente ignorava a dor que assolava o meu corpo. Apenas assim, podia continuar a correr. 

O Luís já ia lá à frente. “Já falta pouco”, pensava. Faltava pouco mas não o podia acompanhar. Baixei o meu ritmo. Perdido num limbo entre o Luís e o Paulo, os dois em extremos opostos de velocidade. Tinha que encontrar o meu passo. Não podia parar. Não podia pensar. Tinha que descansar em corrida.

Este era um Verão atípico. Frio. Céu mais vezes cinzento, que azul. Todas as semanas, mais do que uma vez, Eu, o Luís e o Paulo, encontramo-nos para correr ao final da tarde. À mesma hora, no pequeno jardim da Rotunda do Carregal. É aí que iniciamos o nosso percurso.

Construído na última década, a Avenida da Régua tem agora um circuito de manutenção. Dois caminhos alaranjados, próprios para correr, caminhar, ou passear de bicicleta. A principal artéria que liga Ovar à Praia do Furadouro, ganhou assim uma nova vida. Todos os dias, faça chuva, ou faça sol. No frio do Inverno, ou no calor do Verão. Todos os dias, várias pessoas juntam-se neste percurso para praticar exercício. Seja ele solitário, ou entre amigos. Esta é uma nova tradição vareira. O culto de uma vida saudável, numa terra regada por espaços verdes, pelo mar, e pela paisagem natural da Ria de Aveiro.

O nosso ritual é cumprido de forma quase ortodoxa. Do Carregal até aos Bombeiros, dos Bombeiros até ao Carregal. Sempre a correr. Alongamentos no jardim e uma caminhada até ao Furadouro. Finalizada com o já habitual momento de contemplação do pôr-do-sol, em um dos esporões que povoam a paisagem. Deixo a minha mente apagar-se perante a imensidão do oceano. Descanso, e encontro alguma paz.

Mas esse momento ainda estava longe. O Luís já ia lá à frente. Não o podia alcançar. Ainda tinha mais um quilómetro por percorrer. Decidi abrandar ainda mais e aguardar pelo Paulo. Sem parar. Não podia parar. Não tardou até que ele me alcançasse. Visivelmente cansado, sempre me questionei porque ele teimava em levar o telemóvel consigo. Embora a música seja boa para manter a cabeça ocupada, o peso extra não o ajudava.

Adoptei o seu ritmo mais calmo, e continuei. As minhas forças começaram a recuperar aos poucos. A dor que sentia começava a esvanecer. Quando finalmente chegámos ao Carregal, não queria parar. Chamei pelo Luís, que já descansava, no jardim, para continuar connosco. Ele disse que seguia a pé, mais tarde. O Paulo concordou, e continuámos a correr em direcção à Praia.

Como se tivesse rejuvenescido, sentia que era capaz de ultrapassar os meus anteriores limites. “Era desta que ia conseguir fazer seis quilómetros seguidos sempre a correr”. Este pensamento motivou-me. O cansaço continuava ali, mas algo mais estava a puxar-me em frente. Já não estava em esforço. Ia conseguir. Perdidas em alguma reserva desconhecida, consegui recuperar as energias necessárias para ultrapassar esta barreira. Era livre. Naquele momento, eu iria voar.

Quando estávamos a pouco mais de 500 metros do fim, o ritmo do Paulo já não era suficiente para mim. Acelerei. Corri. Mais rápido do que antes. Mais rápido do que alguma vez tinha conseguido. O Paulo seguia-me, não muito atrás.

Continuei até às Varinas na entrada do Furadouro. Saltei para dentro da Rotunda, e como o Rocky, ergui os meus braços para o céu. O Paulo chegou pouco depois. Já pelo caminho festejávamos este feito, que à partida, nenhum de nós acreditava ser possível de alcançar.

Aguardámos pelo Luís que ainda tardou um pouco a chegar. Não me lembro de alguma vez me sentir tão feliz por algo que, para muitos, não passava de um feito banal. 

Reunimo-nos os três no esporão. Ainda faltava algum tempo para o anoitecer. O Luís foi o primeiro a falar.

“Uns amigos estão a pensar organizar uma viagem de carro pela Europa. Vocês alinham?”

“Uma roadtrip europeia?”, perguntou o Paulo.

A ideia parecia-me cara, mas uma voz adormecida nos confins da minha mente, gritava pelas palavras de um escritor que, ainda, não conhecia. “O importante é partir, não é chegar”.

“O importante é partir”, disse para mim próprio.

Passado algum tempo, regressámos ao meu carro. Pelo caminho partilhávamos ideias. Raramente interessantes, projectos, e histórias com pouco, ou nenhum sentido.

O Paulo foi o primeiro a sair, ou não vivesse ele bem próximo do centro da cidade. Típica cidade do litoral português, o centro de Ovar é uma praça simples em calçada de granito, com a Câmara Municipal, alguns serviços e restaurantes, e uma Igreja de Santo António que, numa freguesia cujo Patrono é São Cristóvão, santo protector dos viajantes, acaba por deixar algum mistério na sua origem. 

E em viagem seguimos, de regresso a casa.  Breves quilómetros atrás do volante, por ruas já muito familiares. Demasiado familiares. Era hora de partir. “Em qualquer viagem, o importante é partir.”

“Luís, podes contar comigo. Já era tempo de fazermos uma Eurotrip!”

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

XXII

Todas as luzes no céu são estrelas (título original)

Um sentimento de Fogo cresce.
Dentro de mim,
Uma chama acesa,
Solitária, luta contra a escuridão.

Fogo. Que se alimenta de emoções,
Não de Ira, Raiva, Amor ou Paixão.
Mas de uma voz, uma voz que grita,
Que anseia por Resolução.
Por se fazer ouvir,
Por Determinação.

Chama que consome.
Envolve a penumbra,
Ilumina o Universo,
E cresce.

Cresce, consome.
Aquece tudo em seu redor,
Penetra pelas paredes, da sua própria existência.
Arrebata as redes da sua Negação,
Propaga o seu alcance,
Até ao extremo do seu lar.

Ultrapassa-se a si própria.
Liberta-se das amarras.
Amarras que a detém,
Nós cegos, por si feitos.
Feitos, assim. E por si, enfim Desfeitos.

Chama interior,
Nascida estrela,
Vive, olvidada, envolta em escuridão.
Sonho, desperto.
Fome de Motivação.
Fogo descoberto,
Não mais encoberto.

Dúvida, Incerta.
Certeza, dúbia.
Insignificantes palavras,
Frente tão bela e luzia, esperança.
Hoje desperta,
Não mais dormente.

Todas as luzes no céu são estrelas,
Como é, tão bem, estrela esta luz.
Todas as chamas são fogos,
Fogos amigos, que a estrelas ambicionam.
Que dia, após dia, sonham,
Com a luz, que assim se concretiza,
E com a estrela, que enfim, neste dia desperta.

Covilhã, 19 de Julho de 2013

quarta-feira, 29 de maio de 2013

L’Heure Bleue

“A hora mais fria da noite faz-se sentir no momento que antecede o amanhecer. A sua escuridão envolve-nos. Sentimo-nos sós, e, nesse momento, nada é mais assustador que a solidão”. Estava frio. A noite mágica começava a dar lugar a uma nova manhã de terça-feira de Carnaval. Miguel sentia o frio nos ossos. Frio apenas amenizado pelo cansaço, pelas horas não dormidas e pelos excessos da noite anterior. 

Disfarçado de Rambo, Miguel arrependia-se de não ter trazido um casaco, ou vestido algo mais quente por baixo do fato. Frio. O sol já começara a nascer mas naquele preciso momento estava mais frio do que na hora mais escura da noite. A maioria dos seus amigos, também eles fantasiados da mesma forma, já tinha partido com destino incerto. Um grupo de oito, desfeito antes mesmo de a noite terminar. Além de Miguel, apenas restavam dois. 

Encontravam-se em frente ao Rio Cáster, sob o abrigo da escadaria do velho Clube de Vídeo. Miguel ainda guardava na sua mão a fartura que por gulosice, ou por simples desejo, os três se lembraram de comprar. 

“Não vais acabar de comer?”, perguntou-lhe Tiago. 

Embora fora sua a ideia, Miguel não estava com fome. Algo o preocupava. Algo o fazia mover. Algo lhe dizia que não devia estar ali.

“Como pelo caminho”, responde. “Já é tarde. Ou melhor, cedo demais”.

“Sim, também acho que já está na hora de voltarmos para casa.” Após dizer isto, o Tiago combinou com o Rui o melhor caminho para regressarem. Os três despediram-se, e Miguel seguiu pela rua acima.

Atravessou a ponte pelo meio da estrada. Apesar da hora, as ruas ainda continuavam fechadas. Ouvia-se música à distância vinda da tenda que, naqueles dias, ocupava o parque de estacionamento da biblioteca. Várias pessoas vagueavam pelas ruas. Menos ou mais alcoolizadas. Vestidas com as mais diversas fantasias, algumas já destruídas pelas peripécias da noite anterior. Grupos animados. Casais, novos, velhos e acabados de se formar, dividiam-se entre discussões e abraços amorosos. Alguns, inconscientes ou com mau aspecto, eram ajudados por voluntários e dirigidos para os postos de socorro. Miguel ignorava tudo isto.

Perdido no caos silencioso dos seus pensamentos, Miguel segue sem objectivo. O frio e o cansaço tomavam conta do seu corpo mas ainda lhe restavam energias suficientes para percorrer o caminho até casa. 

O primeiro obstáculo não tardou a surgir. A subida do Calvário. Subida que dava jus ao seu nome. Tão fácil de ultrapassar num dia normal, mais complicada após uma longa viagem de bicicleta, hoje, impossível. 

Calmamente, Miguel subiu. Passara já a Capela quando, ao longe, começavam finalmente a surgir os primeiros raios de sol. A aurora dava lugar à manhã e o frio que tanto o atormentava começava a ceder. 

Sentada na paragem de autocarro estava uma rapariga vestida de anjo. De profundos olhos verdes, feições belas e um calmo sorriso. Os tons de avelã do seu cabelo reluziam na ténue luz do amanhecer. Não havia autocarros, não àquela hora, não naquele lugar. Ela olhava tranquilamente em redor, como se aguardasse por algo ou por alguém. Uma boleia, um encontro marcado, uma amiga atrasada. Talvez nenhum dos três, talvez apenas teria escolhido aquele banco para descansar antes de, também ela, regressar a casa.

Miguel viu-a. Trocaram um olhar por breves momentos. Breves, pois nem mesmo a sua beleza era capaz de o desviar dos seus pensamentos. Miguel caminhava com um propósito. Fosse ele qual fosse, motivava-o a continuar. 

“É sempre mais escuro antes do amanhecer”, disse a rapariga pouco depois de Miguel passar por ela. Parou. Olhou para ela. Confuso, sem pensar, apenas perguntou: “Fã de Florence and The Machine?” 

A rapariga levantou-se, caminhou para junto de Miguel e parou à sua frente. As asas da sua fantasia moviam-se com uma graciosidade quase divina. As plumas deslizavam ao sabor da brisa matinal. Pareciam maiores agora do que na primeira vez que as viu de relance. O seu vestido era branco, discreto, delineava as formas do seu corpo como se fosse feito à medida. Não usava nenhuma auréola, como seria de esperar num fato deste género, apenas uma coroa de flores brancas. Miguel sabia o seu nome. Sabia, mas não o recordava.

“Não sabes que é rude deixar uma senhora sozinha numa manhã tão fria?”

Miguel, sem resposta, regressava aos poucos à realidade. Perdido na contemplação desta estranha conhecida que tinha agora pela frente, não foi capaz de dizer nada além do seu olhar de confusão e estranheza.

Ela sorriu e pegou-o pelo braço. “Importas-te que te acompanhe? Vejo que seguimos o mesmo caminho.”

“De todo. Eu vivo perto de...” Com um gesto suave ela coloca um dedo sob os seus lábios, interrompendo-o. “Seguimos o mesmo caminho”, sorriu. “Não estragues a surpresa. Eu acompanho-te.”

Perplexo por aquele gesto, Miguel retribuiu o seu sorriso. Já não sentia o cansaço. Também o frio não era agora mais do que uma velha memória prestes a desvanecer nos confins da sua mente.

Caminharam juntos em silêncio durante algum tempo. Miguel era envolvido por um pensamento de certeza. Aquele algo que o motivara a continuar, permanecia no seu consciente, como que a gritar de felicidade por este ter encontrado o seu destino. 

“Algo te preocupa”, disse ela, pondo fim ao vazio de palavras.

“Esperava que isso não fosse tão óbvio”, respondeu.

“Não o é para mim.”

Miguel hesitou, procurando pela melhor forma de contar aquilo que o atormentava. Por fim disse, “Sinto-me oco. Como se o meu poço de inspiração e de imaginação tivesse há muito secado. Falta-me um propósito. Um destino. Algo pelo qual valha a pena lutar. Uma... Uma...”

“Uma história que valha a pena contar”, completou ela com um tom sério de determinação.

“Sim, uma história”, anuiu. Cumplicidade. Sentimento estranho para partilhar com alguém que tinha acabado de conhecer.

“Porque não começas pela base? Pelo básico, pelo princípio?”

“Não consigo começar a contar algo sem saber como termina. Como posso unir as acções dos protagonistas sem uma linha, sem uma continuidade, sem uma história?”

Passavam agora o largo onde em tempos se erguia um quiosque em madeira. Há alguns anos substituíram-no por uma estátua em homenagem a um desportista de quem poucos se recordam. 

Miguel lembra-se das manhãs passadas ali em criança, a caminho da escola. Por vezes parava para comprar uns rebuçados ou uns cromos. Hoje, desse quiosque, apenas restam as suas memórias. Suas, e das árvores que ainda permanecem naquele local, despreocupadas, incólumes e ignorantes dos eventos que por ali foram passando.  

Não sabia explicar como, ou porquê, mas Miguel percebia que ela tinha lido os seus pensamentos.

“Essa é uma história bonita. Triste, mas bonita. O rapaz que tem saudades da sua infância, a criança que chora com a destruição dos seus lugares preferidos. Uma história com início, meio e fim. Uma história que conheces bem.”

“Uma história que poucos quererão ouvir”, respondeu.

“Talvez. Depende de como a contares.”

Miguel hesitou e fechou-se por um instante nos seus pensamentos. “Uma história minha. Apenas uma velha memória. Por mais poética que a tente tornar, há algo que falta a um conto tão simples.”

“Se simples não é algo que procuras, porque não contas uma história mais arrojada? Algo que envolva, mistério, risco e um futuro incerto?”

“Bons ingredientes, difíceis de encontrar.”

Ela parou novamente e virou-se para o encarar. “Estão mesmo à tua frente.”

Sorriu. “Queres que conte a história do dia em que encontrei um anjo só, numa paragem de autocarro?”

“Não, quero que contes a tua história. O teu mistério, os teus riscos, o teu futuro.”

“O meu futuro?”, Miguel retomou o seu caminho, ponderando sobre as palavras que ela lhe acabara de dizer. Pesavam-lhe como se algo se estivesse a abrir dentro dele. Memórias que ele ainda não tinha vivido. Sentimentos de um passado esquecido que ficara por se concretizar. 

Enfim falou. “Em tempos tentei fazê-lo.” Estavam agora a poucos metros da casa de Miguel. Ambos pararam. Ela para o ouvir. Ele para lho dizer.

“Sentei-me dias a fio a contemplar o horizonte. Escrevi. Escrevi. Escrevi. Folhas de papel, amarrotadas pelo vento. Gastei a minha caneta. Mas desapareceram. Todas.” 

“Noites a fio imaginei a minha história, reescrevi as personagens, coloquei-as nas mais variadas situações. Mas nenhuma valeu a pena. Nenhum falou mais alto até àquele dia.” 

“Até aquela tarde em que não a reconheci quando passou ao meu lado. Até aquela tarde em que ela me chamou e nada mais pareceu importar. Até aquela tarde em que folha por folha, cada uma se deixou lavar pelo mar. Cada uma afogada no eterno oceano daquela história que não consegui completar. Que não quis completar. Que não mais voltei a ler. A pensar, ou a escrever. Uma história que acabou sem que eu nunca a tivesse podido contar.”

Lágrimas correram pelo rosto de Miguel. Embora mantivesse a seriedade das suas palavras, as emoções das mesmas assolavam-no e dificultavam a sua respiração. 

A estranha rapariga vestida de anjo que o acompanhara neste longo caminho, não conseguia esconder a sua empatia após tão pesada e crua confissão. Abraçou-o. Envolveu-o nos seus braços. O tempo parou. Nada mais sentiam que não o calor dos seus corpos. Nada mais ouviam que não o bater dos seus corações.

A pouco e pouco, Miguel recuperou o seu fôlego. A tormenta em que se encontrava parecia ter acalmado. As nuvens cinzentas do seu pensamento deram lugar a um céu azul, vivo como aquele que é banhado pelo sol primaveril. O seu poço encheu-se. Sentia-se vivo. Desperto. Tinha encontrado a sua história.

Ela olhou-o nos olhos. As faces de ambos reflectiam uma rara felicidade, indistinta para qualquer um, mas que os ligava profundamente num laço, numa linguagem, que apenas os dois podiam compreender. 

“Estás perto de casa...”, disse ela.

“...e perto de ti”, respondeu.

Sorriu. As suas asas pareciam agora reluzir intensamente, como se uma nova vida tivesse nascido por entre as plumas que as enfeitam. Como se ganhassem novamente vontade para voar. Esperança. Sim. Tudo parecia possível. Naquele momento. Naquele lugar.

“Por agora seguimos um caminho diferente. A noite foi longa. Precisamos de dormir.”

Palavras que o empurraram de regresso à realidade daquele dia que, por momentos, não parecera ser mais que um sonho.

Miguel queria pedir-lhe para ficar. Para falarem. Para que aquele momento não acabasse por ali. 

Não o fez. Compreendia. Voltara a sentir o seu cansaço. O sono. O frio. Anuiu.

“Posso acompanhar-te até tua casa”, disse.

“Esse caminho apenas eu o posso fazer. Não te preocupes. Ver-nos-emos em breve”, sorriu.

Miguel sabia que o que ela dizia era verdade. Sabia que esta história não ia terminar desta forma.

Despediram-se. Miguel dirigiu-se para casa. Mas, enquanto procurava as suas chaves, voltou para trás para a chamar.

“Não me disseste o teu nome.”

“Sara. Da próxima vez não te esqueças de trazer o teu casaco, Miguel. O cavalheirismo demanda que o ofereças a uma senhora a morrer de frio numa manhã como estas.”

Ambos se riram com aquela despedida. Miguel não questionou o facto dela saber o seu nome. No fundo ele sempre soubera o dela. 

Sara, ecoava na sua mente, como uma boa memória há muito guardada no seu coração, como uma recordação de um futuro ainda por viver que, finamente, ressurgia após um longo período de escuridão.

Miguel estava finalmente em casa. É mais escuro antes do amanhecer. A hora azul. A hora mais fria da noite. O prólogo mais quente de uma história que é sua. De uma história que ele não podia imaginar. De uma manhã mágica que o despertou para o caminho que tinha agora que seguir.

“Sara, nome tão simples, mas tão belo. Estou em casa, mas, hoje, estou tão perto de ti.”


Publicado em 15 de Setembro de 2013

segunda-feira, 13 de maio de 2013

O Regresso

Foi em finais de 2004 que comecei a dar os primeiros passos no universo da blogosfera. Blue Dove. Assim se chamava o meu primeiro blogue. Alocado na velha plataforma de blogues do Sapo, Blue Dove foi até ao início de 2006 o espaço predilecto para partilhar os meus pensamentos, as minhas histórias, as minhas ideias, a minha arte, mas, acima de tudo, a minha voz.

No dia 17 de Janeiro de 2006 decidi dar um novo rumo à minha aventura como blogger e criei o meu blogue actual, o No Sense of Reason. Deixei o Sapo para trás e juntei-me à comunidade do Blogspot. Embora o No Sense seja o único blogue que actualizo com alguma regularidade, ao longo dos anos fui criando novas plataformas por necessidade de me dedicar a temas e linguagens mais específicos.

Janeiro de 2007 viu nascer o Story Writer, um blogue que durante alguns anos mantive secreto. Dedicado apenas à divulgação dos meus contos originais e de capítulos de histórias maiores, Story Writer era o espaço onde eu acumulava e arquivava todos os contos que escrevi e que publiquei na blogosfera desde os inícios do Blue Dove. Eventualmente comecei a produzir conteúdos únicos para este blogue, contudo o meu perpétuo writer’s block impediu-me de o manter actualizado de forma regular. 

Nesse mesmo ano, em Julho, criei a Antologia do Eu, um blogue que tinha como único objectivo divulgar a minha escrita lírica. Tal como o Story Writer, este blogue também continha poemas que já tinham sido publicados noutros blogues e alguns inéditos que eu mantinha guardados nas minhas gavetas. Antologia do Eu tem a particularidade de a maioria dos seus poemas não terem título, sendo numerados consoante a data de publicação em numeração romana. 

Dois mil e sete foi mesmo um ano rico para a expansão da minha blogosfera pessoal. Por motivos académicos criei um blogue com o nome 25 de Julho. Alusão ao feriado e dia da cidade da minha terra natal, Ovar. Criado em Março desse ano, ao longo dos anos usei-o como uma espécie de portfólio onde divulgava alguns trabalhos académicos. Posteriormente transformei-o num blogue noticioso dedicado ao arquivo das notícias e reportagens que escrevi para o jornal Praça Pública. 

Foi preciso esperar até 2009 para que a minha blogosfera ganhasse uma nova face e um novo membro. Em Janeiro de 2009, em comemoração do terceiro aniversário do No Sense of Reason remodelei o seu design, actualizei o template e redistribui as ordens de publicação da minha blogosfera pessoal. Também por motivos académicos criei o Mercúrio do Porto, blogue que mantenho ainda hoje para divulgar notícias que escrevi nas entidades onde trabalhei, assim como alguns projectos que desenvolvi ao longo do meu Mestrado. 

Vi-me assim com cinco blogues por entre as mãos e sem tempo para dedicar a todos eles. Acabei por privilegiar o No Sense of Reason em detrimento dos restantes. Volta e meia actualizo o Mercúrio do Porto, ainda hoje mantendo-se como um blogue de apoio ao meu portfólio. Já os restantes dependem muito da minha inspiração e desbloqueamento criativo. 

Para meu desgosto, descobri há alguns meses que o meu velhinho Blue Dove foi deitado abaixo pela Sapo sem qualquer aviso prévio. Embora já não o actualizasse há oito anos, agradava-me saber que ele continuava ali como registo dos meus primeiros devaneios na arte da escrita e do pensamento criativo. Volta e meia encontrava-me a ler um ou outro dos meus velhos artigos. Emocionava-me com as recordações que eles traziam e usava algumas das suas frases como inspiração para os meus projectos futuros.

Vê-lo ficar offline após tanto tempo foi um duro golpe que me fez perder toda e qualquer confiança na Sapo. Senti um profundo vazio como se parte de mim tivesse sido apagada para todo o sempre. Felizmente mantive um arquivo digital de todos os artigos que publiquei naquele blogue. 

Há já algum tempo que tenho vindo a pensar sobre uma forma de voltar a repor estes meus pedaços de identidade online. Inicialmente ponderei simplesmente publicá-los, um a um, no No Sense. Contudo, isto criaria uma anormalidade de cinquenta e muitas publicações num único mês. Para não falar de uma eventual confusão ideológica entre o actual estilo do No Sense of Reason e a emoção em bruto do Blue Dove. 

Aliado a isto tinha também o problema dos outros blogues que nos últimos anos têm estado relativamente inactivos. Juntando o útil ao agradável, cheguei à conclusão de que a única forma de resolver este problema seria criar uma nova plataforma dedicada ao arquivo do antigo Blue Dove e dos restantes membros da minha blogosfera. 

Sob o domínio A Flock of Blue Doves, nasce assim o novo membro do universo No Sense. De cara lavada, a nova reencarnação do Blue Dove vai inicialmente funcionar como um arquivo. Diariamente de Domingo a Quinta-feira serão publicados os velhos artigos do primeiro Blue Dove. Cada um deles será reeditado com o objectivo de corrigir eventuais erros ortográficos ou de sintaxe, contudo não irei alterar qualquer aspecto do seu conteúdo. 

Terminada a reposição de todos os artigos do Blue Dove serão também publicados e reeditados os arquivos de Story Writer, Antologia do Eu e 25 de Julho

Após esta fase o blogue continuará a funcionar no mesmo âmbito que os restantes funcionam. Embora os meus artigos de opinião continuem a ser publicados no No Sense of Reason, assim como as minhas notícias, press releases e textos afins vão continuar a ser publicados no Mercúrio do Porto, todos os meus contos e poemas vão passar a ser divulgados neste blogue. 

Não pretendo com isto pôr a baixo nenhum dos blogues que vão deixar de ser actualizados. O Story Writer, o Antologia do Eu e o 25 de Julho vão permanecer online por tempo indefinido com o objectivo de salvaguardar as datas de publicação do seu conteúdo e também para servirem como memorabilia do meu passado como blogger. 

Os fãs do No Sense of Reason não precisam de se preocupar, esse continuará a ser actualizado com a frequência do costume.

Hoje dou um passo decisivo na restauração da minha memória online. No espírito do velho Blue Dove: Believe in me and I’ll believe in you!