quinta-feira, 25 de novembro de 2010

XX

Imagem apagada, de um caminho deserto,
Ancestrais pegadas, perdidas no vento.
Espaços vazios. Nada.

Realidade imaginária, nunca questionada,
Sopros de silêncio, pela noite abafados.
Viagens por partir. Nada.

Cidades escuras, de idiomas ausentes,
Carentes ruínas, ainda por escrever.
Tempos perdidos. Nada.

Sonetos antigos, sem palavras, nem verbo,
Desenhos gastos, por livros encobertos.
Sonhos esquecidos. Nada.

Mortes insípidas, vazias de dor,
Vidas corridas, cegas por amor.
Histórias em branco. Nada.

Nomes deixados, algures no horizonte,
Passados vencidos, derrotas sem sabor.
Saberes desleixados. Nada.

Cansaço eterno, por saúdes prometidas,
Mentes adormecidas, sem onda, nem valor.
Projectos parados. Nada.

Esperança contínua, sem sentido de razão,
Preces ouvidas, sem pedido, ou decisão.
Águas retraídas. Nada.

Tudo, em um todo, apenas,
Paradoxos eloquentes, de parágrafos roubados.
Poemas iletrados. Nada.

Certezas antes vistas, no incerto do destino,
Runas indecisas, por um fado caótico.
Letras encobertas. Nada.

Sentimentos guardados, na ânsia do porvir,
Futuros inesperados, no limite de desistir.
Corações partidos. Nada.

Doces Novembros, há muito vividos,
Nunca esquecidos, hoje partilhados.
Amor por viver. Dias por receber.
Nada, é tão simples.
Nada, que tudo é. Tudo.

Publicado em 9 de Setembro de 2013

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Decisões

“Todos os dias somos confrontados com pequenas decisões, momentos que definem a direcção do nosso caminho.” Um telefonema, uma breve conversa e quatro anos volvidos, hoje é um dia diferente.

Os primeiros raios de sol abrem caminho pelas persianas, envolvendo o meu quarto aos poucos numa suava carícia de calor matinal. Acordo pouco antes da hora que programei no despertador. Enquanto aguardo que este desperte mergulho na fantasia de um dia diferente. Um dia como hoje.

A mesma hora, a mesma música. “Talvez esteja na hora de mudar a estação de rádio, já há uns tempos que não consigo apanhar o ‘Café da Manhã’”, penso. O mesmo banho, as mesmas roupas, o mesmo pequeno-almoço. As rotinas dão-me conforto, são seguras e estáveis. Aconteça o que acontecer posso sempre contar com elas.

Pego no meu telemóvel, nada de novo. Questiono-me se devia continuar a adiar a compra de um novo, ter a caixa de mensagens sempre cheia já começa a irritar. Saio de casa. A mesma porta, as mesmas chaves, o mesmo carro. Talvez não o mesmo, a cor é diferente. Mantém ainda o tom original, um verde-água sinónimo da sua experiência, marcado pelos longos quilómetros de estrada já percorridos. Hoje tem ainda mais alguns para fazer.

É bom estar de regresso a casa. Após estes últimos anos em constante viagem é bom ter um lugar para guardar as malas, dormir numa cama já bem familiar e fazer-me à estrada sem precisar de um mapa.

A viagem, essa, indispensável desde o meu regresso, é já ela mais um mero percurso rotineiro que, não fosse pela imprevisibilidade do trânsito, faria de olhos fechados.

Chego a Arouca pouco antes das nove e meia. Cidade diferente. Entro no café do costume onde a vejo a tomar o pequeno-almoço. Um croissant e uma meia de leite, também ela criatura de rotinas. “Se apenas esse leite fosse de soja podias ser perfeita”, digo-lhe com um sorriso. Ela limita-se a olhar-me de relance fingindo ignorar-me. Sento-me ao seu lado a aguardar a sua reacção. “De todos os cafés em todo o Mundo, tinhas que entrar no meu”, acaba por dizer. Beijamo-nos. Um beijo, também ele rotina, não fosse pela constante novidade de emoções que este momento desperta. Cada vez, único.

O seu nome é Sofia. Conheci-a há anos. Partilhávamos o mesmo sonho. Tomámos a mesma decisão, mas em cidades diferentes. Eu no Porto, ela em Lisboa. Lugar-comum nestas histórias. Nada de novo. Há dois anos, o destino, ou talvez uma mera coincidência entre duas pessoas que escolheram o mesmo ano para fazer Erasmus, ditou que nos encontrássemos em Madrid.

Conhecemo-nos quando já nos tínhamos esquecido um do outro. Conhecemo-nos no momento certo. “Assim estava escrito”, disse-lhe pouco após o nosso primeiro beijo. Ela sorriu. O mesmo sorriso.

“Vamos chegar atrasados”, disse. “Deixa-os esperar, a maioria deles prefere continuar na camioneta a dormir em vez de nos ouvir”, respondi. Ela concordou. Com alguma relutância deixámos aquele lugar.

Cabia a nós fazer a visita guiada ao Museu de Arouca. Uma breve lufada de ar fresco nos exaustivos dias de trabalho de campo. O grupo de hoje era uma turma de uma escola básica da região. A maioria das crianças distrai-se com facilidade e acaba por prestar pouca atenção às nossas apresentações. Acabamos por passar metade do tempo a avisar para não tocarem nas exibições. A minha única esperança é que, entre as poucas dezenas de alunos, haja pelo menos um interessado, sem medo de nos pôr à prova.

A turma de hoje parecia mais calma que as anteriores. Como era habitual gastámos algum tempo a explicar a origem das pedras parideiras e a mostrar-lhes alguns dos exemplares que pareciam maravilhar por breves instantes as suas jovens mentes. Enquanto ela os levava para a sala com os fósseis de trilobites, fui preparar o anfiteatro para a projecção de um pequeno documentário sobre os nossos estudos de campo.

Um rapaz franzino seguiu-me para colocar algumas questões. Já tinha reparado nele, era o que parecia mais atento do grupo. Perguntou-me sobre o que fazia, sobre o meu curso, também ele queria seguir as minhas pisadas. Sugeri alguns sites onde ele se podia informar e, antes de o levar para junto do resto da turma, disse: “Se o teu sonho for algo que te traga verdadeira felicidade, não desistas antes de o concretizares.”

Ao aperceber-me do forte impacto que teria na vida daquele rapaz, deixei-me envolver por um agradável sentimento de realização. São simples momentos como este que mudam o tom de qualquer dia.

Durante o filme, sentei-me ao lado da Sofia no fundo da sala. Contei-lhe a conversa que tive com aquele rapaz enquanto recordávamos alguns dos momentos passados durante as filmagens. “Não és um pouco novo para ser o mentor de alguém?” perguntou. “Talvez. Duvido que aquele rapaz se lembre de mim ou daquilo que lhe disse, mas quem sabe, talvez um dia ele nos venha a citar na sua tese de doutoramento.”

“A mim talvez, já tu, é outra história”, respondeu fixando o olhar na tela de projecção enquanto esboçava um expressivo gesto de contentamento. Fingi ignorá-la e imitei o seu recém-descoberto interesse pelo vídeo. Estava na parte em que explicava o processo da separação do fóssil da placa de xisto. Lembro-me bem daquela tarde. Cansados e cheios de pó após um longo dia de trabalho, acabámos por dar um mergulho numa das várias cataratas da Serra da Freita. Uma tarde diferente.

Passava pouco do meio-dia quando nos despedimos da turma. Almoçámos no centro, um pequeno restaurante com esplanada perto do convento. “Temos que aproveitar estes últimos dias de calor”, foi a desculpa que ela usou para me convencer a almoçar ali. Talvez um dia tenha que aprender a dizer não, mas hoje não é esse dia.

A mesma comida, o mesmo atendimento. “Estou a pensar levar umas fatias de pão-de-ló”, disse. “Prefiro o de Ovar”, respondeu. Diferente lugar, mas algumas coisas não mudam.

Chegámos ao centro museológico do Geoparque de Arouca pouco antes das duas da tarde. O resto da equipa já estava à nossa espera. A Sofia é do sul de Aveiro, desde pequena que teve uma forte paixão pela paleontologia. Terminada a licenciatura na Universidade de Lisboa, iniciou agora o doutoramento em parceria com a universidade de Madrid onde nos conhecemos. O estudo dela foca os vestígios paleozóicos do centro de Portugal.

É curioso como, embora tivéssemos passado grande parte das nossas vidas próximos um do outro, foi necessário ir para outro país de forma a, por fim, nos encontrarmos.

Passei as últimas semanas a ajudá-la com os trabalhos de campo. Já nos verões anteriores fizemos o mesmo em preparação das nossas teses. Daqui a um mês irei para a Lourinhã juntar-me ao Octávio Mateus e a mais um grupo de jovens investigadores. Também fui aceite no mesmo programa doutoral que ela, mas decidi seguir uma linha diferente de estudo. Durante os próximos meses irei assistir à recolha dos fósseis de uma nova espécie de saurópode similar ao Lourinhasaurus. Ela acabará por se juntar a mim, mas não podemos escapar a algumas semanas de separação. Dias como este são, assim, muito importantes.

Separámo-nos do resto do grupo em busca de novas áreas ainda por explorar. Recolhemos algumas amostras promissoras e preparávamo-nos já para regressar quando sugeri que fizéssemos uma pausa. Preparei um pequeno piquenique com alguns dos seus doces preferidos. Aguardámos durante horas, que na verdade não passaram de meros minutos, a fitar as belas paisagens da serra. Uma ligeira brisa acariciava o seu rosto. Com a sua face encostada sobre o meu peito, sentia as fortes batidas do meu coração, sinónimo de uma ligação mais profunda do que alguma vez podia ter imaginado.

Por um instante era como se o próprio tempo tivesse cedido à nossa vontade. O resto do mundo parecia não mais importar enquanto nos perdíamos um no outro.

Não tardou a regressarmos à realidade daquele dia. Regressámos para junto do grupo e continuámos o nosso trabalho. Ao fim do dia jantámos todos juntos novamente no centro da cidade. O mesmo jantar, pessoas diferentes.

Levei-a até casa. Pelo caminho mergulhámos num profundo oceano de milhares de conversas, todas elas a esconder simples palavras que ambos reconhecíamos no olhar um do outro. Ao despedir-me dela, fiquei para trás a observá-la enquanto se dirigia para a sua porta. Ela olhou para trás e sorriu. Senti uma forte necessidade de lhe dizer o que sentia, mas mesmo que as palavras ficassem por ser ditas, ela era capaz de as ler naquele simples gesto. Assim como eu as li no seu último relance antes de entrar.

Não era uma despedida. Amanhã voltaria a vê-la. Amanhã.

Regressei a casa. A mesma estrada, o mesmo carro, a mesma rotina. Deitei-me. A mesma noite, a mesma cama, um dia diferente, um pensamento diferente. Deixei-me adormecer, envolto na felicidade daquele dia, foi para ela o meu último pensamento. Mal podia esperar para acordar, para a ver, para voltar àquele lugar. Mal podia esperar para ver este sonho concretizado. Mal podia esperar.

O mesmo eu, um dia diferente, um mundo diferente, uma escolha diferente.

São simples os momentos que nos definem. Podem surgir por entre as linhas de um bom livro, na equação dos acordes de uma boa música, ou nas palavras de uma pessoa querida. Para mim foi um telefonema, dois minutos de conversa e um comum formulário.

Hoje, não é um dia diferente.

Publicado em 30 de Setembro de 2014

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Infinito

“Estou muito perto de casa, mas tão longe de ti”. Faltava pouco para o anoitecer, apenas o suave e contínuo ressoar das ondas do mar perturbava o silêncio daquela tarde. O cinzento das nuvens ameaçava chover e, apesar do tardar da hora, o sol não tinha ainda iniciado a sua descida até ao mais profundo dos horizontes. Miguel fitava o infinito, a sua face coberta por um vazio de expressão. Na sua mão um papel, branco, acariciado por uma ligeira brisa que teimosamente o tentava libertar do gentil aperto que ali o mantinha.

“Um simples papel é inútil até que alguém escreva nele”, pensava. Miguel procurou no bolso do seu casaco, lá aguardava uma caneta que há muito ansiava por usar. “Qualquer amor é inútil se ambos não estiverem dispostos a arriscar”, escreveu.

“Ontem estivemos próximos um do outro, podia sentir-te e sabia que estavas ali, mas não conseguia ver-te. Embora os nossos olhos nunca se tenham cruzado, hoje sei que também me sentiste. Pode apenas um dia, um simples momento, uma mera palavra, definir a nossa história?” Miguel escrevia, procurava nas suas palavras uma resposta a algo que não lhe cabia perguntar. Enquanto os seus dedos guiavam a caneta ao longo do papel, na sua mente permanecia apenas uma recordação.

“É tarde, não devo estar aqui”, dizia Sara, dirigindo-se mais para si própria do que para ele. Era uma noite como qualquer outra, após um longo dia juntos, encontravam-se agora sentados nas escadas do apartamento de Miguel. Falavam há horas sem nada dizer.

“Nem sempre o que devemos fazer é aquilo que temos de fazer”, respondeu ele. Sara esboçou um ligeiro sorriso enquanto os seus olhos calmamente se desviavam à procura dos de Miguel. Ele respondeu de igual forma, mas o seu sorriso rapidamente deu lugar a uma face de preocupação, na expectativa da conversa que se iria seguir.

“Porque não pode isto ser mais simples?”, perguntou.

“Por mais que eu queira… Por mais que queiramos que seja, simplesmente, não o é”, respondeu Sara sem um mero sinal de hesitação.

“Eu quero dizer-to, e ouvir-te a dizê-lo”.

“Eu também.”

“Parece-me bastante simples”, por um momento a voz de Miguel ameaçou falhar, enquanto os seus olhos se fixavam nos dela.

Aproximaram os seus lábios em antecipação do momento que ambos desejavam. Horas podiam ter passado enquanto os dois se deixavam afundar na ilusão de um amor impossível.

De regresso à fria realidade daquela noite, Miguel e Sara trocavam olhares como se estivessem envoltos numa longa conversa sem palavras. Para alguém que por ali passasse seria tão fácil identificar o diálogo inexistente entre estes dois, que não estranharia a falta de qualquer tipo de som.

Mas por mais que algumas coisas sejam, desde logo, entendidas por ambos, é necessário dizê-las com algo mais que um olhar.

“Não podemos continuar assim”, disse Sara quebrando o silêncio.

“Qualquer outra alternativa… É algo que eu não quero”, respondeu Miguel.

“Mas não estaremos os dois a enganar-nos com promessas vãs de algo que não pode acontecer?”

“Porque não pode acontecer?”

Sara suspirou, desviando o olhar para as suas mãos em busca das palavras que podiam tornar aquele momento menos doloroso. Não as encontrou.

“Porque apenas vivemos de momentos. Dias, horas, meros instantes que ocupam uma percentagem ínfima das nossas vidas”.

“Isso não é uma resposta, muito menos uma razão.”

“Amanhã não estaremos juntos, regressamos às nossas vidas, a realidades onde não existimos”.

“Tu existes na minha realidade, e eu na tua. Estamos juntos, aqui e agora, e amanhã podemos voltar a estar. De que vale deixarmo-nos definir por barreiras auto-impostas que apenas nos impedem de viver aquilo que mais desejamos?”

“Mas isto é tudo tão irreal… Tão platónico”, ela soluçou, reduzindo a sua voz a um mero suspiro.

“Como pode algo tão intenso ser apenas platónico? Como pode algo tão real não passar de uma mera ilusão?”

“Não sei, simplesmente, é”.

Sara continuava concentrada nas suas mãos, como se nelas guardasse a resposta. Embora algo dormente pela frieza das últimas palavras, Miguel prosseguiu com a discussão.

“Sara…”, dizer o nome dela sempre foi tarefa difícil, pois cada sílaba, cada letra, formava mais do que uma mera palavra, dizer o seu nome, dizê-lo ali, era, para Miguel, quase como dizer “amo-te” pela primeira vez. “Nós somos tão reais como tu, como eu, como estes degraus, como a noite que nos envolve, e por mais ilusórios que sejam os nossos desejos, são parte daquilo que nós somos”.

Suavemente colocou a sua mão sobre a dela, e encostou-a ao seu peito.

Cada batida do coração de Miguel era como um impulso que puxava para fora as palavras, a verdade que há muito reservava no interior do seu próprio coração.

Antes que Sara o pudesse dizer, antes que deixasse escapar aquilo que outras promessas a impediam de proferir, Miguel beijou-a.

Unidos, inseparáveis pelo mais intenso dos abraços, eram agora um só, partes iguais de um todo que não mais queriam ver desfeito.

Por mais perfeito que um momento seja, por mais que o desejo de ambos o prolongue, tudo tem o seu fim.

Sara agarrou com força o casaco de Miguel, e encostou a sua face ao seu peito. Embaraçada por esta falha para com as suas obrigações, deixou-se envolver por uma raiva incontrolável, largou-o e levantou-se, virando-lhe as costas.

Miguel já esperava esta reacção. Aguardou um pouco antes de a tentar acalmar.

“Não podemos continuar assim. Não posso continuar a fazer isto, não posso”, disse ela.

Sem hesitação, ele repostou: “Sim, amanhã tens que regressar à ilusão que preferes, em vez desta realidade”.

“Dizes isso com tamanha facilidade, falas em ligações, em destinos, em verdade. A verdade é que não me conheces, nem eu a ti”, respondeu Sara.

“Eu conheço-te, e tu a mim.”

“Dizes conhecer-me, mas não sabes as coisas mais simples sobre mim”, ripostou em tom de desafio.

“Posso não saber qual a tua bebida preferida, como tomas o teu café, posso não saber o nome do teu perfume, mas conheço-te de uma forma bem mais profunda. Sei que há dois lados em ti e que são ambos excelentes. O teu lado selvagem que usas como máscara para o resto do mundo, onde guardas os teus desejos, a tua vontade por uma vida intensa sob a égide do carpe diem, e o teu lado moderado que reserva uma rapariga doce e ao mesmo tempo pragmática, que acredita no amor mas com medo de se entregar a sério a alguém. Sei do teu passado, do lado escuro onde temes um dia regressar. Em verdade, és para mim um livro que tanto encontro aberto como fechado, guardas em ti os teus, os nossos segredos, e partilhas cada um sem o mínimo arrependimento.”

“Conheço-te Sara, e amo cada pormenor que faz de ti a mulher que hoje vejo à minha frente.”

Abalada pela sinceridade de Miguel, Sara teve que recorrer ao máximo das suas forças para conter o desejo de correr para os seus braços.

“Disseste-o”, finalmente, disse.

Ainda a recuperar o fôlego após esta confissão, Miguel respondeu simplesmente: “Sim.”

Nem ele podia adivinhar o que ia acontecer a seguir.

Sara fixou o seu olhar no dele, por uma última vez. Naquele momento, cientes do que tinham para dizer, falaram sem uma única palavra. Sara voltou-se, e desapareceu na escuridão da noite.

Miguel ainda demorou alguns minutos até se aperceber que estava agora sozinho em frente ao seu apartamento. Os degraus onde ainda há pouco ambos se tinham sentado a partilhar os pormenores mais íntimos dos seus corações, estavam agora tão vazios como aquela gélida noite primaveril.

A folha em que Miguel escrevia não era suficiente para tudo aquilo que ele tinha para dizer, mas por agora teria que servir.

Letra após letra, palavra após palavra, Miguel depressa chegou à última linha do papel que guardava entre os dedos. Embora para ele todo aquele processo tivesse demorado apenas breves instantes, foram na verdade horas que separaram a primeira da última palavra daquele texto tão precocemente criado.

Leu-o uma, duas, vezes suficientes até lhes perder a conta. O sol ainda se punha no horizonte, a noite timidamente relutante em tomar conta dos céus, quando Miguel guardou o papel e a caneta no bolso do casaco. Ali se manteve por mais alguns minutos, quieto, vazio de pensamento, a fitar o infinito.

Ao levantar-se para regressar a casa, reparou numa ténue figura ao longe na entrada da praia. Estaria ali a fitá-lo há horas, pensou. Talvez tivesse apenas agora chegado e com a curiosidade típica de qualquer um, estranhado a presença de alguém tão afastado do resto do mundo, numa hora como esta.

Miguel começou a andar. A figura mantinha-se estática como que presa aos seus movimentos. Quando finalmente a alcançou, fitou-a de igual modo, e não a reconheceu, passou ao lado, determinado a partir quando a voz daquela figura o deteve.

“Ontem não te vi, mas sabia que estavas lá.”

Ele permaneceu parado. Ambos de costas um para o outro com o olhar fixo no horizonte.

“Na outra noite, estava errada, pois tu conheces-me, e eu a ti.”

Miguel serrou as mãos impedindo-se, a custo, de revelar qualquer emoção.

“Tu também tens dois lados, que ambos adoro. O teu lado desinteressado que vê a vida como uma contínua rotina de coisas desnecessárias, animada por esporádicos momentos como aqueles que partilhamos. O lado que não tem medo de arriscar tudo por aquilo que acreditas como sendo verdade. E o teu lado emocional, que se reserva por detrás de um receio de te entregares e saíres magoado, mas que ao mesmo tempo alimenta uma forte crença no amor, num amor capaz de destroçar qualquer barreira por mais irracional que tal tarefa aparente ser. Ambos partilhamos o lado escuro, com origens diferentes, é certo, mas onde a luz igualmente não brilha. Temes cair nesse poço tanto ou mais como eu. Somos diferentes e ao mesmo tempo iguais. Conheço-te Miguel, e é por tudo isto, por ti, por nós, que eu também te amo.”

Sem saberem ao certo como ali chegaram, tão depressa estavam separados como agora se encontravam unidos em mais um abraço profundo. Enquanto lágrimas de alegria escorrem pelos olhos de ambos, Miguel e Sara trocam um sorriso que dá por terminada a longa tempestade que os assombrou nos últimos tempos.

Como que à espera deste encontro, o Sol surge finalmente por entre as nuvens, pintando de laranja o céu tardio.

Abençoados por esta surpresa divina, perdem um momento a contemplar o reluzir do mar sob a luz do final de tarde. Miguel limpa as lágrimas da face de Sara e beija-a. O primeiro beijo do resto das suas vidas.

E o texto que Miguel guardava no bolso do casaco? Larga-o agora, livre na brisa vespertina. Palavras soltas ao vento, com destino incerto, para sempre ilustradas no eterno amor que ambos agora partilham.

Publicado em 29 de Agosto de 2013

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Numa tarde

Três da tarde. “Dizem que a cor do mar não é a mesma em todo o lado, de facto, tudo neste dia é diferente”. O sol raiava por entre as nuvens de um dos últimos céus de Inverno que Março ainda tinha para oferecer. Miguel aguardava pensativo numa modesta esplanada à beira-rio. 

Este lugar não guardava nada de extraordinário para qualquer simples viajante que por ali passasse. Embora a vista para o estuário, e a sua consequente ligação ao mar, motivassem uma breve contemplação sobre o sentido da nossa própria existência, quando comparada com a imensidão do horizonte, nada diferenciava este lugar de tantos outros espalhados ao longo das margens. Talvez assim fosse para qualquer simples viajante, mas não para Miguel. Na verdade, há já vários anos que ele sonhava com este lugar. Com este momento.

“Deseja alguma coisa?” A interrupção do empregado retira Miguel das profundezas dos seus pensamentos, e força-o a emergir na realidade do momento. 

“Não, obrigado. Estou à espera de alguém”, responde. 

“Muito bem”, o empregado volta as costas à sua mesa e já regressava para o interior da esplanada quando ouve Miguel a chamá-lo. 

“Desculpe, ouvi dizer que os vossos pastéis de nata são dos melhores da zona, sempre é verdade?” 

“Imagino que todos os cafés se gabem do mesmo, mas posso garantir-lhe que os nossos são cinco estrelas. Quer que lhe traga um para provar?” 

“Não, prefiro aguardar. Acarta com as responsabilidades se o que me disse acabar por não ser verdade?” 

Perplexo com a pergunta, o empregado esboça um sorriso. “Com todo o gosto. Vou certificar-me que lhes são servidos os melhores pastéis de nata que temos hoje”. 

“Não lhe pedia tanto, mas obrigado”, Miguel responde com outro sorriso. Ambos despedem-se por agora. O empregado apreçasse a atender um casal que tinha chegado no entretanto à esplanada, enquanto Miguel regressa à sua contemplação do infinito horizonte. 

Prestes a reimergir no interior da sua mente, Miguel é interrompido por duas mãos que suavemente acariciam os seus olhos, e lentamente transformam o dia em noite, num instante mais breve que qualquer eclipse. 

“Não devias perguntar ‘quem é’?” 

Ele sente a face desta nova personagem aproximar-se do seu ouvido. Com um sussurro quase inaudível, responde: “Não.” 

Miguel sorri. A partir desta simples palavra é impossível decifrar a quem pertence a voz que a enunciou. Contudo, ele reconhece-a, não pela voz, mas pelo gesto, pelo cheiro, pelo seu toque, mas, acima de tudo, pela forma como o seu coração acelera na sua presença. 

Delicadamente, Miguel retira as mãos dela e, mantendo os olhos fechados, vira-se na sua direcção. “Olá Sara.” Abre os olhos. 

“Olá”, responde. 

Ambos trocam olhares por breves segundos. Segundos que, para cada um, representam a eterna ansiedade pelo momento que ambos desejam que se siga, mas que ambos são forçados a negar. 

“Queres-te sentar?” Miguel pergunta, pondo fim ao impasse. 

Sara afasta os seus negros cabelos num suave movimento de uma indescritível beleza que deixa Miguel incapaz de desviar o olhar, e de contemplar este momento como se o próprio tempo tivesse abrandado, e fixa o seu olhar no horizonte. 

“Escolheste um bom sítio”, diz. 

“Ainda bem que gostas. O empregado até se deu ao trabalho de nos guardar os melhores pastéis de nata que eles aqui têm.” 

Sara sorri e volta a observá-lo por instantes. “Então é melhor que o chames, quero ver se são tão bons como dizem”. 

Miguel oferece-se para a ajudar a sentar-se, gesto raro nos dias de hoje. O seu cavalheirismo sempre foi algo que Sara apreciou nele, mesmo que, por vezes, lhe dê algum embaraço aceitar tão simples gestos de delicadeza. Mas não hoje, não aqui. 

O empregado pede dois minutos em resposta ao aceno de Miguel. 

“Desculpa o atraso, não conheço muito bem esta zona”, diz ela. 

“Não faz mal, sou dotado de uma eterna paciência, principalmente quando aguardo por algo que vale a pena a espera”, responde, expectante pela sua reacção. 

Sara sorri-lhe, não um simples sorriso, mas aquele que guarda apenas para ele.

“Já querem pedir?” Regressa o empregado, interrompendo friamente o momento. 

“Bom, pode trazer os famosos pastéis.” 

“Muito bem, e para beber?” 

“Dois cafés”, Sara responde. 

“É para já”. O empregado afasta-se e regressa pouco tempo depois. 

“Espero que esteja tudo de agrado.” Sara e Miguel provam os pastéis de nata e perdem-se momentaneamente num êxtase simultâneo de sabores medievais. 

Entreolham-se, surpreendidos com a deliciosa simplicidade gastronómica que a combinação da canela com as natas proporciona. 

Ambos agradecem ao empregado, e este despede-se com uma expressão de dever cumprido. 

Durante alguns minutos, Sara e Miguel não conseguem falar de outra coisa além desta deliciosa surpresa protagonizada por umas simples natas. 

“Temos que começar a vir cá mais vezes”, diz ela. 

“Eu gostava”, responde. Um silêncio instala-se entre ambos. Não o típico silêncio de alguém que disse algo de errado, mas o silêncio de duas pessoas que não precisam de palavras para descrever o que ambos pensam. 

Miguel suspira e inicia a conversa que os trouxe ali. “Eu não tenho medo.” 

“Medo?”, Sara pergunta, confusa perante esta inesperada afirmação. 

“De nós. De arriscar”, ele responde com uma certeza sincera presente no seu olhar. 

Sara desvia o olhar e contempla o horizonte por breves momentos. 

“Não é assim tão simples”, responde. 

“Sara, eu…” Miguel é interrompido pelo suave toque da mão dela na sua. 

Sara fixa o seu olhar no dele. Os seus olhos castanhos penetram-no profundamente e atingem-lhe o coração, paralisando-o. 

“Eu também”, responde com aquele sorriso que guarda apenas para ele. “Tu sabes. Mas não é assim tão simples”. 

Miguel liberta-se momentaneamente do feitiço que a profundidade penetrante dos olhos de Sara lhe impõe e esboça um ligeiro “Porquê?” 

“Porque não te quero perder. Porque há tantas coisas contra nós. Porque connosco tem que ser perfeito. Porque eu…”

“Porque tu…?” Miguel liberta-se por completo do laço mental em que Sara o mantinha. 

“Porque eu…”, Sara quer dizê-lo, o seu coração força-a a gritar as palavras que há muito tenta conter, mas a sua voz trai-a no último instante. 

Motivada pela frustração do momento, levanta-se e vai-se encostar ao muro que separa o passadiço do rio, fixando o olhar na margem distante. 

Lentamente, Miguel vai ao seu encontro e coloca suavemente as suas mãos sob os ombros dela. 

Algumas lágrimas escorrem pelo rosto de Sara. Não são lágrimas de dor ou tristeza, mas de pesar por um amor impossível que a ilude sempre que se aproxima dele. Porque não basta desejá-lo, porque não basta amá-lo, porque é que não podemos ser felizes um com o outro como qualquer outro casal? São as questões que passam pela sua mente enquanto o toque de Miguel a atira para um transe de sentimentos e desejos proibidos. 

O sol da tarde reflecte nas suas lágrimas, iluminando o seu rosto com um universo de cores, criando uma imagem digna de qualquer um dos grandes pintores. Fosse ela hoje retratada, sobreviveria ao teste do tempo, imortalizada para sempre na eterna beleza de uma tela, que todas as galerias do mundo desejariam exibir. 

Miguel coloca as mãos sob o seu rosto e limpa-lhe as lágrimas. Sara não resiste, os seus olhos fixam-se nos dele, presos na ansiedade de concretização de um desejo, por ambos, há muito procurado. 

Ambos fecham lentamente os olhos e deixam que os seus lábios se encontrem. 

Uma música suave faz-se ouvir no fundo enquanto ambos se beijam. Embora não possam ter a certeza, ambos sabem que ela é real, e que tanto Miguel como Sara partilham neste momento uma melodia unicamente reservada para o seu amor, que já mais alguém para além deles irá ouvir. 

Miguel toma Sara pela mão. Ambos trocam olhares como se se vissem pela primeira vez. De certa forma, estavam a ver-se pela primeira vez. Já não eram Miguel e Sara, eram algo novo. 

Começam a andar em direcção ao horizonte sem desviar o olhar um do outro. As suas silhuetas confundem-se uma com a outra, culminando na final representação de um amor ao qual nenhum deles é capaz de resistir. 

Neste dia, neste momento, Miguel e Sara deixaram de existir. 

“Agora somos dois”. 

Publicado em 26 de Agosto de 2013