Três da tarde. “Dizem que a cor do mar não é a mesma em todo o lado, de facto, tudo neste dia é diferente”. O sol raiava por entre as nuvens de um dos últimos céus de Inverno que Março ainda tinha para oferecer. Miguel aguardava pensativo numa modesta esplanada à beira-rio.
Este lugar não guardava nada de extraordinário para qualquer simples viajante que por ali passasse. Embora a vista para o estuário, e a sua consequente ligação ao mar, motivassem uma breve contemplação sobre o sentido da nossa própria existência, quando comparada com a imensidão do horizonte, nada diferenciava este lugar de tantos outros espalhados ao longo das margens. Talvez assim fosse para qualquer simples viajante, mas não para Miguel. Na verdade, há já vários anos que ele sonhava com este lugar. Com este momento.
“Deseja alguma coisa?” A interrupção do empregado retira Miguel das profundezas dos seus pensamentos, e força-o a emergir na realidade do momento.
“Não, obrigado. Estou à espera de alguém”, responde.
“Muito bem”, o empregado volta as costas à sua mesa e já regressava para o interior da esplanada quando ouve Miguel a chamá-lo.
“Desculpe, ouvi dizer que os vossos pastéis de nata são dos melhores da zona, sempre é verdade?”
“Imagino que todos os cafés se gabem do mesmo, mas posso garantir-lhe que os nossos são cinco estrelas. Quer que lhe traga um para provar?”
“Não, prefiro aguardar. Acarta com as responsabilidades se o que me disse acabar por não ser verdade?”
Perplexo com a pergunta, o empregado esboça um sorriso. “Com todo o gosto. Vou certificar-me que lhes são servidos os melhores pastéis de nata que temos hoje”.
“Não lhe pedia tanto, mas obrigado”, Miguel responde com outro sorriso. Ambos despedem-se por agora. O empregado apreçasse a atender um casal que tinha chegado no entretanto à esplanada, enquanto Miguel regressa à sua contemplação do infinito horizonte.
Prestes a reimergir no interior da sua mente, Miguel é interrompido por duas mãos que suavemente acariciam os seus olhos, e lentamente transformam o dia em noite, num instante mais breve que qualquer eclipse.
“Não devias perguntar ‘quem é’?”
Ele sente a face desta nova personagem aproximar-se do seu ouvido. Com um sussurro quase inaudível, responde: “Não.”
Miguel sorri. A partir desta simples palavra é impossível decifrar a quem pertence a voz que a enunciou. Contudo, ele reconhece-a, não pela voz, mas pelo gesto, pelo cheiro, pelo seu toque, mas, acima de tudo, pela forma como o seu coração acelera na sua presença.
Delicadamente, Miguel retira as mãos dela e, mantendo os olhos fechados, vira-se na sua direcção. “Olá Sara.” Abre os olhos.
“Olá”, responde.
Ambos trocam olhares por breves segundos. Segundos que, para cada um, representam a eterna ansiedade pelo momento que ambos desejam que se siga, mas que ambos são forçados a negar.
“Queres-te sentar?” Miguel pergunta, pondo fim ao impasse.
Sara afasta os seus negros cabelos num suave movimento de uma indescritível beleza que deixa Miguel incapaz de desviar o olhar, e de contemplar este momento como se o próprio tempo tivesse abrandado, e fixa o seu olhar no horizonte.
“Escolheste um bom sítio”, diz.
“Ainda bem que gostas. O empregado até se deu ao trabalho de nos guardar os melhores pastéis de nata que eles aqui têm.”
Sara sorri e volta a observá-lo por instantes. “Então é melhor que o chames, quero ver se são tão bons como dizem”.
Miguel oferece-se para a ajudar a sentar-se, gesto raro nos dias de hoje. O seu cavalheirismo sempre foi algo que Sara apreciou nele, mesmo que, por vezes, lhe dê algum embaraço aceitar tão simples gestos de delicadeza. Mas não hoje, não aqui.
O empregado pede dois minutos em resposta ao aceno de Miguel.
“Desculpa o atraso, não conheço muito bem esta zona”, diz ela.
“Não faz mal, sou dotado de uma eterna paciência, principalmente quando aguardo por algo que vale a pena a espera”, responde, expectante pela sua reacção.
Sara sorri-lhe, não um simples sorriso, mas aquele que guarda apenas para ele.
“Já querem pedir?” Regressa o empregado, interrompendo friamente o momento.
“Bom, pode trazer os famosos pastéis.”
“Muito bem, e para beber?”
“Dois cafés”, Sara responde.
“É para já”. O empregado afasta-se e regressa pouco tempo depois.
“Espero que esteja tudo de agrado.” Sara e Miguel provam os pastéis de nata e perdem-se momentaneamente num êxtase simultâneo de sabores medievais.
Entreolham-se, surpreendidos com a deliciosa simplicidade gastronómica que a combinação da canela com as natas proporciona.
Ambos agradecem ao empregado, e este despede-se com uma expressão de dever cumprido.
Durante alguns minutos, Sara e Miguel não conseguem falar de outra coisa além desta deliciosa surpresa protagonizada por umas simples natas.
“Temos que começar a vir cá mais vezes”, diz ela.
“Eu gostava”, responde. Um silêncio instala-se entre ambos. Não o típico silêncio de alguém que disse algo de errado, mas o silêncio de duas pessoas que não precisam de palavras para descrever o que ambos pensam.
Miguel suspira e inicia a conversa que os trouxe ali. “Eu não tenho medo.”
“Medo?”, Sara pergunta, confusa perante esta inesperada afirmação.
“De nós. De arriscar”, ele responde com uma certeza sincera presente no seu olhar.
Sara desvia o olhar e contempla o horizonte por breves momentos.
“Não é assim tão simples”, responde.
“Sara, eu…” Miguel é interrompido pelo suave toque da mão dela na sua.
Sara fixa o seu olhar no dele. Os seus olhos castanhos penetram-no profundamente e atingem-lhe o coração, paralisando-o.
“Eu também”, responde com aquele sorriso que guarda apenas para ele. “Tu sabes. Mas não é assim tão simples”.
Miguel liberta-se momentaneamente do feitiço que a profundidade penetrante dos olhos de Sara lhe impõe e esboça um ligeiro “Porquê?”
“Porque não te quero perder. Porque há tantas coisas contra nós. Porque connosco tem que ser perfeito. Porque eu…”
“Porque tu…?” Miguel liberta-se por completo do laço mental em que Sara o mantinha.
“Porque eu…”, Sara quer dizê-lo, o seu coração força-a a gritar as palavras que há muito tenta conter, mas a sua voz trai-a no último instante.
Motivada pela frustração do momento, levanta-se e vai-se encostar ao muro que separa o passadiço do rio, fixando o olhar na margem distante.
Lentamente, Miguel vai ao seu encontro e coloca suavemente as suas mãos sob os ombros dela.
Algumas lágrimas escorrem pelo rosto de Sara. Não são lágrimas de dor ou tristeza, mas de pesar por um amor impossível que a ilude sempre que se aproxima dele. Porque não basta desejá-lo, porque não basta amá-lo, porque é que não podemos ser felizes um com o outro como qualquer outro casal? São as questões que passam pela sua mente enquanto o toque de Miguel a atira para um transe de sentimentos e desejos proibidos.
O sol da tarde reflecte nas suas lágrimas, iluminando o seu rosto com um universo de cores, criando uma imagem digna de qualquer um dos grandes pintores. Fosse ela hoje retratada, sobreviveria ao teste do tempo, imortalizada para sempre na eterna beleza de uma tela, que todas as galerias do mundo desejariam exibir.
Miguel coloca as mãos sob o seu rosto e limpa-lhe as lágrimas. Sara não resiste, os seus olhos fixam-se nos dele, presos na ansiedade de concretização de um desejo, por ambos, há muito procurado.
Ambos fecham lentamente os olhos e deixam que os seus lábios se encontrem.
Uma música suave faz-se ouvir no fundo enquanto ambos se beijam. Embora não possam ter a certeza, ambos sabem que ela é real, e que tanto Miguel como Sara partilham neste momento uma melodia unicamente reservada para o seu amor, que já mais alguém para além deles irá ouvir.
Miguel toma Sara pela mão. Ambos trocam olhares como se se vissem pela primeira vez. De certa forma, estavam a ver-se pela primeira vez. Já não eram Miguel e Sara, eram algo novo.
Começam a andar em direcção ao horizonte sem desviar o olhar um do outro. As suas silhuetas confundem-se uma com a outra, culminando na final representação de um amor ao qual nenhum deles é capaz de resistir.
Neste dia, neste momento, Miguel e Sara deixaram de existir.
“Agora somos dois”.
Publicado em 26 de Agosto de 2013
Sem comentários:
Enviar um comentário