quarta-feira, 29 de maio de 2013

L’Heure Bleue

“A hora mais fria da noite faz-se sentir no momento que antecede o amanhecer. A sua escuridão envolve-nos. Sentimo-nos sós, e, nesse momento, nada é mais assustador que a solidão”. Estava frio. A noite mágica começava a dar lugar a uma nova manhã de terça-feira de Carnaval. Miguel sentia o frio nos ossos. Frio apenas amenizado pelo cansaço, pelas horas não dormidas e pelos excessos da noite anterior. 

Disfarçado de Rambo, Miguel arrependia-se de não ter trazido um casaco, ou vestido algo mais quente por baixo do fato. Frio. O sol já começara a nascer mas naquele preciso momento estava mais frio do que na hora mais escura da noite. A maioria dos seus amigos, também eles fantasiados da mesma forma, já tinha partido com destino incerto. Um grupo de oito, desfeito antes mesmo de a noite terminar. Além de Miguel, apenas restavam dois. 

Encontravam-se em frente ao Rio Cáster, sob o abrigo da escadaria do velho Clube de Vídeo. Miguel ainda guardava na sua mão a fartura que por gulosice, ou por simples desejo, os três se lembraram de comprar. 

“Não vais acabar de comer?”, perguntou-lhe Tiago. 

Embora fora sua a ideia, Miguel não estava com fome. Algo o preocupava. Algo o fazia mover. Algo lhe dizia que não devia estar ali.

“Como pelo caminho”, responde. “Já é tarde. Ou melhor, cedo demais”.

“Sim, também acho que já está na hora de voltarmos para casa.” Após dizer isto, o Tiago combinou com o Rui o melhor caminho para regressarem. Os três despediram-se, e Miguel seguiu pela rua acima.

Atravessou a ponte pelo meio da estrada. Apesar da hora, as ruas ainda continuavam fechadas. Ouvia-se música à distância vinda da tenda que, naqueles dias, ocupava o parque de estacionamento da biblioteca. Várias pessoas vagueavam pelas ruas. Menos ou mais alcoolizadas. Vestidas com as mais diversas fantasias, algumas já destruídas pelas peripécias da noite anterior. Grupos animados. Casais, novos, velhos e acabados de se formar, dividiam-se entre discussões e abraços amorosos. Alguns, inconscientes ou com mau aspecto, eram ajudados por voluntários e dirigidos para os postos de socorro. Miguel ignorava tudo isto.

Perdido no caos silencioso dos seus pensamentos, Miguel segue sem objectivo. O frio e o cansaço tomavam conta do seu corpo mas ainda lhe restavam energias suficientes para percorrer o caminho até casa. 

O primeiro obstáculo não tardou a surgir. A subida do Calvário. Subida que dava jus ao seu nome. Tão fácil de ultrapassar num dia normal, mais complicada após uma longa viagem de bicicleta, hoje, impossível. 

Calmamente, Miguel subiu. Passara já a Capela quando, ao longe, começavam finalmente a surgir os primeiros raios de sol. A aurora dava lugar à manhã e o frio que tanto o atormentava começava a ceder. 

Sentada na paragem de autocarro estava uma rapariga vestida de anjo. De profundos olhos verdes, feições belas e um calmo sorriso. Os tons de avelã do seu cabelo reluziam na ténue luz do amanhecer. Não havia autocarros, não àquela hora, não naquele lugar. Ela olhava tranquilamente em redor, como se aguardasse por algo ou por alguém. Uma boleia, um encontro marcado, uma amiga atrasada. Talvez nenhum dos três, talvez apenas teria escolhido aquele banco para descansar antes de, também ela, regressar a casa.

Miguel viu-a. Trocaram um olhar por breves momentos. Breves, pois nem mesmo a sua beleza era capaz de o desviar dos seus pensamentos. Miguel caminhava com um propósito. Fosse ele qual fosse, motivava-o a continuar. 

“É sempre mais escuro antes do amanhecer”, disse a rapariga pouco depois de Miguel passar por ela. Parou. Olhou para ela. Confuso, sem pensar, apenas perguntou: “Fã de Florence and The Machine?” 

A rapariga levantou-se, caminhou para junto de Miguel e parou à sua frente. As asas da sua fantasia moviam-se com uma graciosidade quase divina. As plumas deslizavam ao sabor da brisa matinal. Pareciam maiores agora do que na primeira vez que as viu de relance. O seu vestido era branco, discreto, delineava as formas do seu corpo como se fosse feito à medida. Não usava nenhuma auréola, como seria de esperar num fato deste género, apenas uma coroa de flores brancas. Miguel sabia o seu nome. Sabia, mas não o recordava.

“Não sabes que é rude deixar uma senhora sozinha numa manhã tão fria?”

Miguel, sem resposta, regressava aos poucos à realidade. Perdido na contemplação desta estranha conhecida que tinha agora pela frente, não foi capaz de dizer nada além do seu olhar de confusão e estranheza.

Ela sorriu e pegou-o pelo braço. “Importas-te que te acompanhe? Vejo que seguimos o mesmo caminho.”

“De todo. Eu vivo perto de...” Com um gesto suave ela coloca um dedo sob os seus lábios, interrompendo-o. “Seguimos o mesmo caminho”, sorriu. “Não estragues a surpresa. Eu acompanho-te.”

Perplexo por aquele gesto, Miguel retribuiu o seu sorriso. Já não sentia o cansaço. Também o frio não era agora mais do que uma velha memória prestes a desvanecer nos confins da sua mente.

Caminharam juntos em silêncio durante algum tempo. Miguel era envolvido por um pensamento de certeza. Aquele algo que o motivara a continuar, permanecia no seu consciente, como que a gritar de felicidade por este ter encontrado o seu destino. 

“Algo te preocupa”, disse ela, pondo fim ao vazio de palavras.

“Esperava que isso não fosse tão óbvio”, respondeu.

“Não o é para mim.”

Miguel hesitou, procurando pela melhor forma de contar aquilo que o atormentava. Por fim disse, “Sinto-me oco. Como se o meu poço de inspiração e de imaginação tivesse há muito secado. Falta-me um propósito. Um destino. Algo pelo qual valha a pena lutar. Uma... Uma...”

“Uma história que valha a pena contar”, completou ela com um tom sério de determinação.

“Sim, uma história”, anuiu. Cumplicidade. Sentimento estranho para partilhar com alguém que tinha acabado de conhecer.

“Porque não começas pela base? Pelo básico, pelo princípio?”

“Não consigo começar a contar algo sem saber como termina. Como posso unir as acções dos protagonistas sem uma linha, sem uma continuidade, sem uma história?”

Passavam agora o largo onde em tempos se erguia um quiosque em madeira. Há alguns anos substituíram-no por uma estátua em homenagem a um desportista de quem poucos se recordam. 

Miguel lembra-se das manhãs passadas ali em criança, a caminho da escola. Por vezes parava para comprar uns rebuçados ou uns cromos. Hoje, desse quiosque, apenas restam as suas memórias. Suas, e das árvores que ainda permanecem naquele local, despreocupadas, incólumes e ignorantes dos eventos que por ali foram passando.  

Não sabia explicar como, ou porquê, mas Miguel percebia que ela tinha lido os seus pensamentos.

“Essa é uma história bonita. Triste, mas bonita. O rapaz que tem saudades da sua infância, a criança que chora com a destruição dos seus lugares preferidos. Uma história com início, meio e fim. Uma história que conheces bem.”

“Uma história que poucos quererão ouvir”, respondeu.

“Talvez. Depende de como a contares.”

Miguel hesitou e fechou-se por um instante nos seus pensamentos. “Uma história minha. Apenas uma velha memória. Por mais poética que a tente tornar, há algo que falta a um conto tão simples.”

“Se simples não é algo que procuras, porque não contas uma história mais arrojada? Algo que envolva, mistério, risco e um futuro incerto?”

“Bons ingredientes, difíceis de encontrar.”

Ela parou novamente e virou-se para o encarar. “Estão mesmo à tua frente.”

Sorriu. “Queres que conte a história do dia em que encontrei um anjo só, numa paragem de autocarro?”

“Não, quero que contes a tua história. O teu mistério, os teus riscos, o teu futuro.”

“O meu futuro?”, Miguel retomou o seu caminho, ponderando sobre as palavras que ela lhe acabara de dizer. Pesavam-lhe como se algo se estivesse a abrir dentro dele. Memórias que ele ainda não tinha vivido. Sentimentos de um passado esquecido que ficara por se concretizar. 

Enfim falou. “Em tempos tentei fazê-lo.” Estavam agora a poucos metros da casa de Miguel. Ambos pararam. Ela para o ouvir. Ele para lho dizer.

“Sentei-me dias a fio a contemplar o horizonte. Escrevi. Escrevi. Escrevi. Folhas de papel, amarrotadas pelo vento. Gastei a minha caneta. Mas desapareceram. Todas.” 

“Noites a fio imaginei a minha história, reescrevi as personagens, coloquei-as nas mais variadas situações. Mas nenhuma valeu a pena. Nenhum falou mais alto até àquele dia.” 

“Até aquela tarde em que não a reconheci quando passou ao meu lado. Até aquela tarde em que ela me chamou e nada mais pareceu importar. Até aquela tarde em que folha por folha, cada uma se deixou lavar pelo mar. Cada uma afogada no eterno oceano daquela história que não consegui completar. Que não quis completar. Que não mais voltei a ler. A pensar, ou a escrever. Uma história que acabou sem que eu nunca a tivesse podido contar.”

Lágrimas correram pelo rosto de Miguel. Embora mantivesse a seriedade das suas palavras, as emoções das mesmas assolavam-no e dificultavam a sua respiração. 

A estranha rapariga vestida de anjo que o acompanhara neste longo caminho, não conseguia esconder a sua empatia após tão pesada e crua confissão. Abraçou-o. Envolveu-o nos seus braços. O tempo parou. Nada mais sentiam que não o calor dos seus corpos. Nada mais ouviam que não o bater dos seus corações.

A pouco e pouco, Miguel recuperou o seu fôlego. A tormenta em que se encontrava parecia ter acalmado. As nuvens cinzentas do seu pensamento deram lugar a um céu azul, vivo como aquele que é banhado pelo sol primaveril. O seu poço encheu-se. Sentia-se vivo. Desperto. Tinha encontrado a sua história.

Ela olhou-o nos olhos. As faces de ambos reflectiam uma rara felicidade, indistinta para qualquer um, mas que os ligava profundamente num laço, numa linguagem, que apenas os dois podiam compreender. 

“Estás perto de casa...”, disse ela.

“...e perto de ti”, respondeu.

Sorriu. As suas asas pareciam agora reluzir intensamente, como se uma nova vida tivesse nascido por entre as plumas que as enfeitam. Como se ganhassem novamente vontade para voar. Esperança. Sim. Tudo parecia possível. Naquele momento. Naquele lugar.

“Por agora seguimos um caminho diferente. A noite foi longa. Precisamos de dormir.”

Palavras que o empurraram de regresso à realidade daquele dia que, por momentos, não parecera ser mais que um sonho.

Miguel queria pedir-lhe para ficar. Para falarem. Para que aquele momento não acabasse por ali. 

Não o fez. Compreendia. Voltara a sentir o seu cansaço. O sono. O frio. Anuiu.

“Posso acompanhar-te até tua casa”, disse.

“Esse caminho apenas eu o posso fazer. Não te preocupes. Ver-nos-emos em breve”, sorriu.

Miguel sabia que o que ela dizia era verdade. Sabia que esta história não ia terminar desta forma.

Despediram-se. Miguel dirigiu-se para casa. Mas, enquanto procurava as suas chaves, voltou para trás para a chamar.

“Não me disseste o teu nome.”

“Sara. Da próxima vez não te esqueças de trazer o teu casaco, Miguel. O cavalheirismo demanda que o ofereças a uma senhora a morrer de frio numa manhã como estas.”

Ambos se riram com aquela despedida. Miguel não questionou o facto dela saber o seu nome. No fundo ele sempre soubera o dela. 

Sara, ecoava na sua mente, como uma boa memória há muito guardada no seu coração, como uma recordação de um futuro ainda por viver que, finamente, ressurgia após um longo período de escuridão.

Miguel estava finalmente em casa. É mais escuro antes do amanhecer. A hora azul. A hora mais fria da noite. O prólogo mais quente de uma história que é sua. De uma história que ele não podia imaginar. De uma manhã mágica que o despertou para o caminho que tinha agora que seguir.

“Sara, nome tão simples, mas tão belo. Estou em casa, mas, hoje, estou tão perto de ti.”


Publicado em 15 de Setembro de 2013

Sem comentários:

Enviar um comentário