Era de manhã. Tinha acordado há pouco. Era um dia diferente, algo não soava como devia, o sol não brilhava como devia, algo estava para acontecer.
Mesmo assim, segui com a rotina normal, e preparei-me para sair. Ao início da tarde dirigi-me à estação para ir viajar, alguém esperava por mim, algures a norte. A viagem é uma sombra na minha memória que se esvanece cada vez mais rápido. Mas, por mais ténue que seja, nunca esquecerei o momento em que a carruagem parou, e abri a porta para desembarcar.
Lá estava quem me esperava. Quem eu queria. Quem precisava de mim. Quem eu não podia viver sem. Nada o podia prever. Talvez apenas aquelas sensações estranhas que tive ao acordar. Sempre vi a manhã como algo místico, algo que nos tenta abrir os olhos, mas mantive os meus fechados, e agora era tarde demais.
O edifício atrás dela tinha explodido, sobrevivi apenas com alguns arranhões, mas ela não. Esta vida podia ter sido salva. Esta vida não se limitaria a agradecer, mas para meu azar, a minha falta de compreensão, fez com que tudo isto acontecesse. Não a consegui salvar. Só quis morrer ali, enquanto sentia a sua vida a esvanecer-se nos meus braços.
Nunca me perdoei. Nem a mim, nem ao mundo. Talvez fosse isso que despoletou os eventos do dia seguinte. Dia esse, que não foi mais nada do que o dia anterior.
Acordei exaltado, o telemóvel estava a tocar. Atendi-o como se estivesse a atender um auscultador de um telefone de rua que tinha sido cortado. Era ela, ela estava viva.
Teria sido tudo um sonho? Já tive sonhos vívidos antes, mas nunca tão reais. Não, a razão dizia-me que não passava de um sonho, mas a verdade é que os meus instintos gritavam. Eu tinha recebido uma segunda chance, e não a podia desperdiçar.
Cancelei o nosso encontro, pedi para adiá-lo para outra altura. Nessa noite, falámos sobre o quão horrível teria sido se eu o não tivesse cancelado. A estação onde nos devíamos ter encontrado horas antes, tinha explodido. O primeiro verdadeiro sinal de terrorismo neste país.
Talvez agora, depois disto tudo, tenha mudado de ideias, mas se pudesse voltar atrás, faria tudo de novo. Afinal, com segundas hipóteses, ou sem elas, não podemos mudar o passado. Algo terá que o viver.
Umas semanas depois, recebi um telefonema, uma voz tremendamente familiar estava do outro lado da linha. Ele disse-me algo que parecia completamente irreal, mas, depois dos eventos passados, torna-se complicado distinguir o real do irreal.
Concordei em encontrar-me com ele. O local era muito estranho, vindo directo de um filme de acção de Hollywood. Era suposto estar no terraço do prédio mais alto do centro da cidade, pelas dez da noite.
Tentei contactá-la para que alguém soubesse onde, e com quem, eu estaria na eventualidade de algo me acontecer. Mas não consegui. Hesitei muito, mas lá ganhei coragem para ir ao encontro do destino.
Era noite, a Lua brilhava, mas as nuvens começavam a tapá-la. Ia começar a chover muito em breve. Apenas queria que aquilo acabasse depressa, e iria acabar.
Uma sombra surgiu por detrás da antena, aliás, não era uma, mas sim duas. Uma delas era estranhamente familiar, a outra era mais do que isso. Era ela. Estava presa e assustada, um estranho apontava-lhe uma arma. Fiquei paralisado. Consegui salvá-la apenas para a ver morrer nas mãos de um palhaço qualquer com sede de vingança?
Vingança? Porquê vingança? Que fiz eu de mal? A figura é-me familiar, mas de certeza que o que quer que seja que eu lhe tenha feito, nada justificaria esta atitude.
“Estou a ver que não te atrasaste. Impressionante, tendo em conta quem és”, disse a estranha figura que apontava a arma.
“Essa voz... Não, não pode ser...”
“Sim, diz olá a ti próprio.”
Isto era a gota de água. Eu? Porque raio queria eu matar aquela que dava o único significado à minha vida? E como estou eu ali?
“Não podes ser Eu! Quem és? Deixa-a em paz, ela não tem nada a ver com isto!”
“Ah, mas aí é que te enganas. Ela tem tudo a ver com isto. Lembras-te de um "sonho" que tiveste há algum tempo? Com explosões e comboios?”
“Sim, mas isso foi só uma premonição.”
“Não! Isso foi a minha vida. Eu fui o teu presente criado para que tu não sofresses. Não achas isso um pouco injusto? Venho aqui repor a justiça.”
“Que estás a dizer? Eu não tenho culpa do que te aconteceu, nem ela tem! Acredita, eu sei como te sentes, e se te dizes ser eu então serias incapaz de magoar aquela que amas.”
“Que estão para aí a falar? Deixa-me ir”, gritou ela em desespero.
“Ouviste-a? Deixa-a ir! Se queres vingança, vinga-te em mim.”
“Infelizmente, não é assim tão simples. Se te matar, eu também morro. Só vivo porque tu vives, e tu só vives porque eu vivo.”
“Então, se eu me atirar deste prédio abaixo, tu não vais ficar lá muito bem. Mesmo que eu sobreviva, vais ser um vegetal. Mas o mais provável é que morras comigo, certo?”
“Não serias capaz. Pensas que não te conheço? És um cobarde.”
“Tens assim tanta certeza disso? Então porque tremes?”
“Não, não faças isso! Se tu não vives sem mim, como pensas que eu viverei?”, disse ela, quando ele se dirigiu para o parapeito daquele terraço.
“Vais ter que sobreviver. A culpa é toda minha, apenas não te esqueças do quanto eu te amo...”
“Não...”, a palavra saiu como um suspiro. Um último segredo entre os dois. Uma última tentativa desesperada de mudar o curso daquilo que era agora inevitável.
“Que estás a fazer? Pára!”, gritou a figura sombria.
E assim, saltei. Só me lembro de sentir a liberdade que é poder voar. Aqueles foram os últimos momentos da minha vida. Agora que a minha memória, que a minha essência, se desvanece, e que a minha alma começa a subir, apenas fico grato por ter sido amado, e por ter salvo aquela que verdadeiramente me amou.
Sinto também pena pelo meu outro eu. Aquele que nunca chegou a ter estes últimos dias com ela. Nem tão pouco, o reconforto de saber que, algures, ela continua a viver a sua vida. Guardando para si, um lugar especial no seu coração, onde ele, tal como eu, seremos para sempre relembrados.
Esta é a minha história. Despeço-me, uma última vez, sabendo que levo comigo a história de um verdadeiro amor.
Publicado em 30 de Junho de 2013
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